A noite nos conduz

<h6>1</h6><p>Na verdade, eu sempre quis aprender a respirar. Lembro-me de dona Lúcia ensinando. Existia a inspiração: o ar entra pelas narinas e enche os pulmões de oxigênio. Existia a expiração: o ar sai já transformado em gás carbônico; meio imprestável, ela dizia, assim como uma tia velha que mora com a gente. Revejo a professora, a cara boa e grande dela, o cabelo preto e sempre armado, as mãos na cintura a inspirar profundamente – pausa – e a expirar; quase a se esvair de si. Inspirando – pausa – expirando; para que toda a classe aprendesse. Tentávamos imitar a professora. Ao vê-la em seu esforço-limite mal disfarçávamos o riso, mas deixávamos a classe inspirando e expirando, inspirando e expirando. Inspirando – pausa – expirando; como se na vida nada fosse mais importante do que aprender a respirar como se deve. </p><p>Anos depois descobri que não era essa a respiração que gostaria de aprender, e sim a respiração que na minha juventude entendia como a verdadeira essência da natureza, o princípio da revelação do mistério. Talvez o fascínio com a respiração e por meio dela poder viver um outro lado da vida, tenha surgido com quinze, catorze anos, deslumbrado que estava com a leitura de textos orientais. Lembro-me de devorá-los com avidez incontrolável, desejoso que na próxima página fosse realmente alcançar a iluminação. </p><p>Retrocedendo pouco mais, percebo que cheguei a esses textos influenciado pela leitura de um livro que, não é exagero dizer, foi o que mais ajudou na decisão que tomei, não faz muitos anos, de mudar de vida. Reli o livro durante o longo e desgastante processo que acabou por determinar o afastamento de minha mulher e de minhas filhas. Talvez a sintonia com certos sinais que o livro revela e que me tocam profundamente, fizesse com que, ao relê-lo, eu revivesse o entusiasmo causado pela primeira leitura. E reli, pela terceira vez, pouco depois de ter voltado ao Brasil, quando tomei a decisão de mudar de vida. Foram essas as únicas vezes em que o li do começo ao fim, durante os anos em que me acompanha, com certeza pela devoção e reverência que guardo por ele. O livro é para mim como um senhor que pede para não ser importunado. Ele me acompanhou em meio a outros tantos livros na mudança para fora do Brasil, mas particularmente ele e, devo dizer, o meu primeiro relógio de pulso e o cachepô de cerâmica tornaram-se, no exterior, meus verdadeiros amigos. Por alguma estranha magia deixaram de ser simples objetos. Foram e voltaram comigo. Tudo o que consegui lá fora, ficou fora de minha vida. Agora, enquanto escrevo, estão aqui ao meu lado. Continuamos juntos. O relógio foi presente de minha irmã mais velha, Alba, logo que começou a trabalhar. Recebia o salário e presenteava a família, e fez assim com todos nós. O cachepô de cerâmica ganhei de uma namorada quando fizemos um mês de namoro. Na ocasião dei a ela uma caixinha de música, e ela por sua vez entregou-me a cerâmica acompanhada de um cartão rosa. No cartão estava escrito que desejava do fundo do coração que eu vencesse na vida, e destacava com letras grandes: “Mas fazendo realmente o que gosta de fazer, o que sinta alegria em fazer”. Por </p><p>fim, o livro A festa de Bremgarten, de H. Lauscher, que amei desde a primeira leitura. Autor que havia descoberto o Oriente e me levara também a descobri-lo, a descobrir meu próprio Oriente, muitos anos depois dele, talvez com a mesma idealização. </p><p>Pensando melhor, o fascínio pela sabedoria oriental era também porque, nos anos de minha adolescência e começo de juventude, vivia-se uma época de busca de novos significados e que viria a culminar, creio, com o último show de Jimi Hendrix. Apesar dos anos, alguns trechos do livro me fazem nitidamente recordar imagens de um jovem lendo. Estranho. Hoje, com a distância, é como se aquele jovem tivesse uma existência que passou rente à minha; como se não fosse eu. O início do romance – a descoberta inesquecível da possibilidade de transformar uma vida – dentro do carro de meu pai, estacionado em frente de casa. Outro tanto, enquanto acompanhava minha mãe que esperava com uma submissão infeliz a vez de ser atendida pelo oculista, num posto de saúde. Porém, a melhor recordação, a imagem de maior intensidade, não é a de um determinado momento de leitura, e sim quando fui visitar Ramiro, um colega que havia conhecido em meu primeiro emprego. Um amigo, caro amigo, que quando voltei definitivamente para o Brasil tinha esperanças de reencontrar. Ramiro convalescia de uma operação sem importância e quando entrei em seu quarto para visitá-lo, assim que me viu sentou-se rápido na cama, esticou-se todo com o livro nas mãos e ordenou; “leia, leia, leia!”. </p><p>Se hoje consigo um olhar sereno sobre as minhas ansiedades daquela época, reconheço que essas leituras individualizavam um eu e escudavam um coração com o pressentimento vago de que se poderia viver uma vida humanamente digna, absorvida em sensações transcendentes e vivenciá-las, embora submetido a um cotidiano desprezível no escritório em que trabalhava. Preciso admitir: as leituras imprimiram em mim uma espécie sensível de salvação. Salvação da profunda melancolia que sentia por supor que teria de conviver para sempre com meu Problema (assim, em maiúscula, pelo poder avassalador que exercia sobre mim, na época). Salvação, por meio do sonho que até hoje insiste, de que resta ainda a frágil esperança de se poder viver um outro lado da vida. E o início de todo esse entendimento estava escrito nos textos, pelo menos a mim parecia, era a respiração. Por isso, sempre quis aprender a respirar. Lembro-me do dia em que li o relato sobre um iogue que ficava vinte, trinta minutos ou mais com a respiração em suspenso. Para um jovem já submetido a horários e regras do mundo do trabalho e que começava a questionar o sentido de liberdade, trinta minutos sem respirar era como desafiar a própria morte, vencê-la nos dados de um jogo viciado. Poder passar para o lado do mistério e só voltar se quisesse. (...) </p>

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(308 pgs.|17 capítulos em três partes | 98.860 palavras |588.400 caracteres com espaço)

Adulto

Romance

Imagine alguém que deixa o Brasil nos anos da ditadura militar. O exílio autoimposto se dá mais por valores existenciais do que propriamente políticos. Duas décadas depois, ele deixa mulher e filhas no exterior e volta só, desejoso de reencontrar um país que a memória idealizou e reconstruir a vida. Desejoso de reencontrar a ambiência, os amigos da infância, inclusive o amigo que enveredara pela luta armada.

Porém, se defronta com finais da Era Collor e, convivendo com individualismos exacerbados, exemplos de imoralidade e corrupção, principalmente no mundo do trabalho do qual participa, procura uma saída, um centro, algum alento existencial.

Esse é o tema que perpassa o romance Quando a noite nos conduz.

O que pontua uma diferença e torna a narrativa mais abrangente se comparada à nossa ficção contemporânea – quase sempre povoada por personagens no limite da esquizofrenia urbana – é que o personagem, em questão, consciente da falência e esgotamento dos valores com pretensões morais, notadamente no “Mundo do Trabalho”, se põe em busca de uma ética própria, até onde isso é possível. Age como um buscador, numa espécie de acordo tácito consigo mesmo, de um modo de vida que o coloque à deriva dos padrões ou modelos preestabelecidos para conseguir assim seguir em frente.

O livro recebeu da Fundação Biblioteca Nacional, o prêmio Bolsa para Autores com Obra em Fase de Conclusão/2009