Hóspede do mirante

<h6>1</h6><h6>André </h6><p> Por lá, poucas coisas não eram verdes. O céu azul, vez ou outra mostrando nuvens cor de chumbo e, em frente à casa, o rio – carregando eternamente um avermelhado. Vinham e iam estações e o verde permanecia, desafiando rebelde a ambição dos homens. </p><p>Atrás da casa, passando a horta; onde se colhia a taioba d’água e poucos legumes, principiava a mata que, devagar, ia se fechando, tornando-se cada vez mais densa, desenhando em si os perfis dos morros, subindo, descendo, indo longe, destacando num lugar uma árvore, diferente das demais – a líder, talvez, daquele trecho da vegetação. </p><p>A recordação da mãe vem com a horta. Às tardes, sentava-se lá, numa cadeira de braços que o pai construiu para que descansasse do dia, da criação do filho – sempre descalço – mas que nunca lhe deu muito trabalho. Ao contrário do pai, ela preferia passar o tempo do lado de trás da casa. Deixar o olhar subir e descer os morros parando por um instante na árvore eminente; vendo o verde até onde deixava de ser verde; até onde sua </p><p>vista gasta permitisse ver. André, com curiosidade de adolescente, escondido entre caixotes, observava atentamente a mãe; os olhos, esbranquiçados, moverem-se lentamente em ciclos: de um lado para outro, de baixo para cima. E nunca conseguiu compreender como aquele ritual de toda tarde podia dar tanto prazer à mãe, a ponto dele mesmo desejar compartilhar da sensação, pondo-se a imitá-la na postura do corpo, no movimento circular dos olhos; fingindo um mesmo prazer. </p><p>O pai ficava em frente à casa, com o rio, de onde tirava os peixes; a mistura, com o que a mãe tirava da horta. </p><p>Pai e mãe – cada um de seu lado, em cada lado uma verdade. A água, as corredeiras, o som incessante do rio. A terra, a imobilidade das árvores, o silêncio do morro. </p><p>André, antes daquela ida ao lugarejo, vivia dividido: não se sentia suficientemente forte para romper com as fronteiras da hora, ou suficientemente ágil para vencer as corredeiras. </p><p>Jamais esquecerá aquela ida. </p><p>Esteve tenso o dia inteiro e à noite se sentia mal. Não queria deixar a mãe para acompanhar o pai ao lugarejo. A presciência do pai indicava a necessidade de partirem rápido, antes das chuvas, antes que o rio tocasse a pedra-preta. Os temporais amedrontavam André. Eram uma espécie de inversão: o céu ficava opaco como a terra – o dia virava noite. Ele não compreendia bem. Nesses momentos, se sentia seguro se estivesse junto da mãe; a toalha quentinha que colocava sobre as costas dela, para protegê-la dos medos. Os olhos fechados de ambos, por pavor dos relâmpagos. </p><p>Lembra da mãe beijando seu rosto apaixonadamente. As mãos apalpando o seu corpo, rezando, benzendo, como se despedisse para sempre. </p><p>No barco, André tinha suas obrigações. Mantinha o óleo do motor, desaguava a água entrona, esquentava algo para comerem e ainda revezava com o pai, rio abaixo, a direção certeira do sul. </p><p>André gostava de ficar olhando o rio: ver passar as árvores ribeiras, os pássaros, desta vez apressados. Sentir como é grande este mundo, cheio de pássaros, árvores e margens que não terminam nunca. Levar o barco sozinho. E tomara que não se faça nenhum barulho, porque gostoso mesmo é ficar olhando o rosto de pai dormindo. </p><p>Próximos ao lugarejo, a chuva persistente e forte os alcançou, chegou antes deles e não parou por lá. Encontraram as alamedas alagadas, um lamaçal que em nada facilitava a compra do gelo, do óleo, dos gêneros, e a venda dos peixes, dos legumes e de algumas peles. Seria melhor com o tempo bom – venderiam com lucro para a gente de fora – ao invés de darem tudo quase de graça no armazém do Mazinho. Por isso, esperaram a chuva passar um dia, o outro dia, e mais um dia. </p><p>De noite, no quarto mixo onde ficavam, o pai via André se mexer na cama sem poder dormir. Imaginava o filho pensando na mãe, preocupado como ele com a chuva e por tê-la deixado sozinha. Sentiu uma ponta de arrependimento, um tremor de repente. Se Deus quiser, André, ela estará bem. Dormindo a esta hora um sono tranquilo e esperando a gente André, com doce-de-coco. Amanhã, mesmo com chuva, a gente volta. (...) </p>

(146 pgs.|24 capítulos em 6 partes | 39.255 palavras |226.490 caracteres com espaço)

Infanto-juvenil

Romance

André vive à beira de um rio no Pantanal. Ele e o pai retornam do lugarejo depois de uma forte chuva e descobrem que a mãe, cega, morrera na enxurrada. O corpo é enterrado no quintal.

George de Córdoba e o filho Daniel chegam ao Pantanal vindos de São Paulo. Visando o lucro, George tenta convencer os nativos, entre eles, André e o pai, que um hotel na região só trará progressos.

O tema é centrada em protagonistas jovens: André e Daniel, com valores e culturas diferentes e que, ao longo da obra, cruzam percursos rumo ao autoconhecimento. Questionamentos interiores, admiração, amizade e intimidade, em resposta às circunstâncias do cotidiano do hotel Mirante.

Romance de formação, com características de “Young Adult”, o livro trata do embate com o destino: quem de um lado o aceita, e quem passa a vida lutando contra ele. É como descer o rio ou remar contra a corrente. Rio que, no caso do Mirante, é emblemático e simbólico.

Cidade e campo, contemplação e ação, cobiça e indiferença, pai e filho. Conflitos que vão definindo escolhas, afirmações profissionais, identidades.

Um escritor, em início de carreira, vai ao Pantanal reencontrar Daniel, companheiro de juventude. E assim ele contará a história do homem em busca de seu lugar no mundo.