O mundo é estranho nessa hora

<h6><strong>1&nbsp;</strong></h6><h6><strong>O VELHO LIMOEIRO </strong></h6><p><strong>Sexta-feira </strong></p><p>Conferiu o horário da passagem: 16h45. Tinha quase duas horas até a partida do ônibus. </p><p>Achou melhor ter escolhido a passagem para mais tarde do que ter embarcado logo que chegou à rodoviária. E pela segunda vez, naquele dia, se surpreendeu e se alegrou por se deixar levar pela intuição. A primeira vez foi ao sair do apartamento: tão logo viu passar um táxi fez sinal e entrou, sem se importar aonde ir. E se surpreendeu e se alegrou agora com a passagem escolhida em função do horário, 16h45, sem se importar com o destino. </p><p>“Sucessão de coincidências”, disse para si. No táxi, pedir para o motorista tocar em frente, sempre tocar em frente, e, ao perceber que passava ao lado da rodoviária, saltar. Depois, a intuição de comprar uma passagem para mais tarde, sem se importar, pela segunda vez, aonde ir. </p><p>“Nada mais importante que o acaso”, disse em voz alta. </p><p>Bem, poderia então se sentar em fila, num daqueles bancos de plástico, e se deixar ali, simplesmente, esperando. Se deixar ali. Olhando para os ponteiros enormes do relógio de quartzo, no alto, com traços marcando os minutos, e tentando adivinhar o momento exato de o ponteiro preto, com ponta de flecha, pular de um traço para outro. </p><p>Poderia andar pela rodoviária. Ou, na lanchonete, pedir uma cerveja, ou melhor, um uísque, guardando alguns minutos para ir ao banheiro antes de descer para a plataforma. Poderia comprar uma revista, talvez um livro; jornal não, nem nessas ocasiões. Gostava de flagrar a si mesmo como aqueles que se permitem ficar diante de uma banca de revista lendo as manchetes do dia e num relance perceber, pela milionésima vez, necessidade nenhuma de comprar os jornais. Gostava de flagrar a si mesmo ladeado de companheiros cúmplices, fingindo indiferença para aquela profusão de cus e bocetas estampadas, concorrendo com as manchetes políticas. </p><p>Quando caminhava pelo centro da cidade, era impossível não parar e ver o camelô executar a sua arte. O chinês cego soprar a flauta de bambu. O pastor de almas arrebanhar ovelhas. Ler as placas nos corpos dos homens-sanduíche. E quantas vezes, em meio à multidão, repentinamente olhava para o alto e se identificava com aqueles que se acercavam dele, também olhando, procurando no céu algo que pudesse surpreender a vida. Desses se sentia próximo; esses eram irmãos. </p><p>Bem poderia então parar e olhar repentinamente para o alto da rodoviária. </p><p>Mas o que fez foi seguir a morena que passou desapercebida à sua frente, sozinha, um tanto apressada. E enquanto a seguia, o jeito dela de dar os passos e o leve gingado de corpo o fizeram lembrar Ana e se lembrou de tudo. Agora, era como se a morena desfilasse só para ele. E continuou a segui-la, pregando os olhos em suas costas, enquanto ela passava sem ser notada, em meio a um mar de infelizes, de bandidos, de ingênuos, de desdentados. De roupas em sacos de farinha, de malas de papelão duro, de fumaça de churrasquinho, de barulho de alto-falante, de óculos escuros, de cores primárias. De aproveitadores, de resignados. De crianças desvalidas dormindo no chão. De sonhos, de despedidas. De rumor de vidas desencontradas. De fuga, de ilusão, de espinhos. </p><p>De fogo em brasa que não se extingue. </p><p><strong>22 de fevereiro </strong></p><p>Galhos secos, entrelaçados, miram em todas as direções. Frágeis, finos como artérias capilares. Como nas placas de circuito impresso de computador. Como os múltiplos braços de uma deusa. Árvore seca: é o que resta do velho limoeiro que vejo no quintal. </p><p>A camada de musgos impregna toda a árvore, recobre, craqueia. Sem uma folha, sem uma flor; árvore morta. Os musgos, nos galhos, imprimem tonalidades cinzas, manchas claras, verde-escuras. Em algumas entranhas e confluências cresce um tufo de parasitas: vida morta dos parasitas. Descendo, em direção ao tronco, a fileira de cogumelos como orelhas perfiladas. O tronco nodoso, com os dois grandes braços de onde partem os galhos em confusão. Secos, entrelaçados. </p><p>Lembra um diagrama de mandala. </p><p>Essa noite sonhei que estava em meu quarto. Ao lado, na cama, minha mulher e meu filho dormiam. Eu precisava escrever, precisava. A história vinha então à minha boca, de uma vez, como vômito. Tentei com a lapiseira, num papel poroso e amarelado, escrever a história. Minhas letras transformavam-se em hieróglifos, enquanto preenchia folhas e folhas manuscritas. Pressenti que iria esquecer a história, se acordasse. </p><p>Num esforço absurdo entre sonho e vigília para que não perdesse tudo, para que a história não caísse num total esquecimento, tentei organizar as folhas manuscritas por unidades definidas de tempo e espaço. Isso porque, havia reparado com certo alívio, que os relatos da vida cotidiana de um dos personagens traziam sempre como título as horas e os minutos do dia. Da mesa forma, o desenrolar dos acontecimentos de outro vinham identificados nas folhas por um dos sete dias da semana. Por fim, o dia e o mês estruturavam os pontos de contato entre os personagens e se confundiam com minha própria história. Foi talvez por isso que, ao acordar, surgiu de pronto à minha mente uma data emblemática que logo anotei pois julguei conter as três histórias. Porém, para escrevê-las, era preciso desvendar seu significado: 22 de fevereiro, sexta-feira, 16h45. </p><p>Inicio então pelo emaranhado de galhos secos, por suas pontas que miram os céus? Ou pelo tronco? Mas até quando o tronco seco conseguirá permanecer na terra, fingindo um equilíbrio frágil? </p><p>Ao lado do velho limoeiro, à esquerda da minha janela, a quaresmeira. É fevereiro e ela está em flor. Flores de um leve arroxeado, quase cor de rosa, tingidas de branco. A quaresmeira sabe-se esplendorosa e se impõe ao lado do limoeiro seco, morto. </p><p>Talvez não importe se inicio a história pelo tronco e siga a caminho dos galhos. Ou prefira os galhos e desça em direção ao tronco. Importa o velho limoeiro, impregnado da camada de musgo, sem uma folha, sem uma flor, ao lado da esplendorosa quaresmeira. O velho limoeiro expõe a estrutura. A grandeza e a pequenez de sua estrutura. </p><p><strong>16h45 </strong></p><p>“Hoje o tempo não passa!”, Ana falou para si. </p><p>Mas a simplicidade do vaso cerâmico, de influência japonesa, repleto de florzinhas cor do sol, escutou. Também, o arquivo de chão; o computador sobre a mesinha de canto; o pequeno cilindro com lápis azuis no. 2, rigorosamente apontados; o compartimento para clipes e borrachas macias; o suporte vermelho da fita durex; o telefone cinza, de teclas; as caixinhas de plástico transparente sobrepostas em diagonal, para entrada e saída de papéis; o grampeador, bem em frente a Ana – todos escutaram. Ana falou para si, mas sabe que também falou para eles. Era a segunda vez que olhava o relógio e os danados dos 15 minutos para as 5 horas não passavam. </p><p>Ana inclinou-se um pouco na cadeira giratória, cruzou as pernas e ajeitou o vestido, puxando-o ao máximo para perto dos joelhos. Abriu a gaveta da direita e retirou um pequeno estojo bordado com a palavra ANA, em letras pretas, presente de Marcelo. Levantou delicadamente a tampa do estojinho e se olhou no espelho. Atrás de si, uma imensidão de fichários coloridos, dispostos obedientemente sobre a prateleira de fórmica, também se olharam. Precisava sair às 5 em ponto: era dia de terapia, não podia se atrasar. Removeu com o dedo a sujeirinha no canto dos olhos e conferiu os lábios vermelhos, apertando suavemente um sobre o outro, sensualmente. Rápido, jogou o estojo na gaveta e a fechou com força. </p><p>– Ana, vou precisar de um favor seu, querida. Preciso apresentar este relatório hoje. Doutor Ricardo quer ver. </p><p>– Estava pronta para sair, doutor D'Ávilla! – Ele quer ver. Desculpe, Ana, preciso dele agora! </p><p><strong>22 de fevereiro, segunda-feira, 16h45 </strong></p><p>Levanto os olhos do livro e olho o quintal. Vejo o velho limoeiro e sinto uma estranha magia. Ele morreu e continua. Permanece em seu lugar, mas está morto. Pássaros pousam em seus galhos, brincam, fazem seus ninhos. Antes do inexorável fim, uma classe numerosa de insetos ainda viverá dele. Em algumas entranhas cresce um parasita: vida morta dos parasitas. Fel-da-terra. Sugam a última gota de seiva. (...) </p>

(130 pgs.|10 capítulos | 36.042 palavras |208.870 caracteres com espaço)

Adulto

Romance

O mundo é estranho nessa hora, será, talvez, o questionamento de projetos de vida através do valor do trabalho: seja ele artístico, burocrático, ou mesmo a opção por sua total anulação de valor.

Trata-se do decurso cotidiano na vida de três personagens: um andarilho, uma secretária, um escritor. Embora com histórias paralelas (narrativa entremeada), os personagens em tempos e buscas diferenciadas, vão se tocando ao longo do livro, para, ao final, encontrarem-se de modo fantástico.

Ana, a secretária, vive a realidade crua do dia a dia numa multinacional (um tema pouco abordado na literatura brasileira). Ela evita, como pode, as investidas do chefe. Sofre com o medo de ser mandada embora, luta por preservar seu espaço junto aos pais controladores. Está brigada com o namorado, faz terapia e começa a questionar seu estilo de vida e a dificuldade que é dizer não.

O livro foi por duas vezes finalista do Prêmio SESC de Literatura, em 2005 e 2014, na categoria Romance.