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A consciência de Zeno

Autor

Ítalo Svevo

Editora

Editorial Minerva Lisboa

Tradução

Maria Franco e Cabral do Nascimento

Entrelinhas e miudezas do cotidiano

“... Túlio voltou a ocupar-se do seu reumatismo, que era também a sua distração favorita. Estudara a anatomia da perna e do pé. Explicou-me que, por mais devagar que andássemos, a duração dum passo não excedia meio segundo, e que, durante esse meio segundo, entravam em movimento cinquenta e quatro músculos. Nem menos um! O pensamento mudou-me de rumo e logo se dirigiu para as pernas, a fim de considerar tão monstruosas máquinas. Fiz a experiência. É claro que não destrincei as cinquenta e quatro engrenagens, mas tive consciência duma complicação inextricável, da qual a atenção esforçada repudiava toda e qualquer harmonia.

Saí do café a coxear, e coxeei durante alguns dias. Andar tornara-se para mim exercício fatigante, mesmo doloroso. Parecia-me que faltava o óleo a este encadeamento de órgãos e que eles se gastavam uns de encontro aos outros a cada movimento. Tempo depois fui atingido por um mal mais grave, que me fez esquecer o primeiro – o que não impediu que ainda hoje, se alguém se põe a observar-me quando eu ando, os cinquenta e quatro músculos se embaracem e eu tenha a impressão de que vou cair.

Esta enfermidade, como as outras, devo-a a Adelina. Quando tocados pelo amor, muitos animais ficam sendo vítimas fáceis para os caçadores. Assim me transformei em campo de doenças: mas tenho a certeza de que se me fosse revelada a monstruosa existência deste maquinismo noutra qualquer ocasião, eu não haveria sofrido nenhum inconveniente.

Entre tantos papéis rabiscados nessa semana, entre a anotação dum “primeiro cigarro” e a expressão do meu desejo de curar-me da doença dos cinquenta e quatro movimentos, encontro uma tentativa poética: versos... a mosca! Se não fossem meus, julgá-los-ia feitos por uma menina bem-educada que fala aos insetos e lhes diz: vós. Mas não há erro, pertencem-me, Prova de que somos capazes de tudo.

Eis como nasceram os versos. Eu voltara a casa muito tarde e, em vez de me deitar, fora para o meu escritório e acendera a luz. Em volta da lâmpada zumbia uma mosca, importunando-me. Consegui atingi-la com um piparote, mas leve, para não a esborrachar no dedo. Já a havia esquecido quando tornei a vê-la sobre a mesa. Recompunha-se lentamente. Imóvel, direita, parecia maior, porque uma das patas, que ficara anquilosada, não podia mover-se. Com as duas patas posteriores, alisava cuidadosamente as asas. Por fim tentou um movimento, mas caiu de costas, voltou-se e recomeçou a esfregar as asas com obstinação.

Escrevi então uma poesia, admirado por descobrir que esse pequeno organismo, invadido por tamanha dor, era dirigido, no seu esforço, por duas convicções erróneas. Primeira, alisando as asas, que se mantinham intactas, o inseto mostrava não saber de que parte do corpo a dor provinha; segunda, a assiduidade do esforço revelava, nessa consciência minúscula, a inabalável certeza de que todos os seres têm direito à saúde e a devem recuperar desde que a perderam. Desculparemos de bom grado estes erros num inseto cuja experiência é curta, pois não vive além duma estação.

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