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A descoberta da escrita

Autor

Karl Ove Knausgard

Editora

Companhia das Letras

Tradução

Marcello Lino

“ ... Quando pouco depois eu parei no alto do morro e vi a cidade mais abaixo, senti uma alegria tão profunda que não entendi como eu aguentaria voltar para casa, como eu aguentaria me sentar para escrever, como eu aguentaria comer, como eu aguentaria dormir. Mas o mundo se revela justamente emnmomentos como aquele, a alegria interna busca uma correspondência externa, e então a encontra, sempre a encontra, mesmo nos lugares mais tristes do mundo, pois a coisa mais relativa que existe é a beleza. Se o mundo fosse outro, ou seja, se não existissem montanhas e mares, planícies e lagos, florestas e desertos, e se o mundo consistisse em outra coisa, para nós impensável, já que não conhecemos nada senão este mundo, nós também o acharíamos belo. Um mundo com gljo e aevanbilit e koniulama, por exemplo, ou até mesmo ibiteitra, prolufn e lopsit, o que quer que essas coisas pudessem ser: nós as teríamos celebrado, porque é assim que somos, celebramos o mundo e o amamos mesmo que não seja necessário, afinal o mundo é o mundo, é tudo que temos.

Quando desci a escada em direção ao centro, naquela quarta-feira no fim de agosto, eu tinha no meu coração um lugar para tudo que eu via. Um degrau de pedra desgastado pelo uso: incrível. Um telhado meio afundado ao lado de uma construção austera de alvenaria: que coisa mais linda. Um papel de cachorro-quente em cima de uma grade de bueiro, que o vento levanta e então torna a cair no chão, desta vez na calçada, cheia de marcas brancas de chiclete pisoteado: incrível. Um homem magro que cambaleia ao longe com um terno puído, levando uma sacola cheia de garrafas numa das mãos: que visão maravilhosa.

O mundo tinha me estendido a mão, e eu a segurei. Durante todo o caminho através do centro e morro acima, e depois também no estúdio, onde imediatamente me sentei para escrever um poema.”

Mostrar os originais como quem mostra um documento ultra secreto

“ ... Um dia eu estava fumando com Espen sob a marquise do prédio da Humanistiske Fakultet enquanto a chuva caía do céu cinza-chumbo e notei que havia uma coisa diferente nele, como que uma vigilância aumentada, e рoucо antes que eu perguntasse sem mais rodeios o que tinha acontecido ele lançou um olhar rápido na minha direção.

— Pensei em me candidatar a uma vaga na Skrivekunstakademiet — ele disse.

— É mesmo? — eu disse. — Que legal! Eu nem sabia que você escrevia. Mas eu tinha uma suspeita. He he.

— Será que você podia dar uma olhada nos meus escritos? Não sei muito bem o que enviar. Se você achar que faz sentido, enfim.

— Claro que posso — eu disse.

— Para dizer a verdade eu tenho uns textos aqui comigo. Você pode pegá-los depois, se quiser.

Quando Espen me entregou os textos mais tarde naquele dia, foi com a mais absoluta discrição. Era como se fôssemos espiões e os textos fossem documentos secretos que não apenas diziam respeito à segurança nacional, mas também à segurança de todo o pacto da Otan. Uma pasta plástica saiu depressa da bolsa, foi passada meio às escondidas por trás de nossos corpos empertigados e tão depressa como havia surgido desapareceu na minha sacola plástica. No mesmo instante em que a troca estava feita, começamos a discutir outros assuntos.

O envolvimento com a escrita não era vergonhoso, pelo contrário, nos estudos de literatura representava tudo que havia de mais importante ou de mais elevado, mas era vergonhoso se vangloriar disso, porque afinal quase todo mundo escrevia, e enquanto os escritos não tivessem sido publicados em um periódico ou, ó bem-aventurança, lançados por uma editora, a principio não significavam nada, eram inexistentes, e revelar essas coisas a não ser em caso de necessidade era uma desonra, era revelar que no fundo você não queria estar aqui, mas em outro lugar, que você tinha um sonho que, e esse era o ponto mais importante, provavelmente não daria em nada. Até que houvesse uma prova definitiva, o lugar de tudo que os alunos de letras escreviam era na gaveta. A situação era um pouco diferente para mim, eu havia frequentado a Skrivekunstakademiet e portanto tinha "direito" a escrever, mas se eu me revelasse, o que seria uma péssima ideia, no mesmo golpe eu teria perdido toda a credibilidade.

Então o jeito era ser cauteloso. O que Espen havia me entregado no mais absoluto sigilo por um lado não era “nada”, porque era invisível e assim devia ser tratado, mas por outro lado provavelmente era mais importante, bem mais importante para ele do que um documento relativo à segurança do pacto de Otan.”

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Karl Ove Knausgard

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Idealizado por Afonso Machado - Todos os direitos reservados

Design e mentoria por Victor Luna

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