A espingarda de caça
Autor
Yasushi Inoue
Editora
Brasiliense
Tradução
Yolanda Steidel de Toledo
A Carta de Shoko: e a flor artificial
“ ... Quando eu era criança, mamãe contou-me a história de um lobo possuído por um demônio, que enganou um coelhinho. O lobo foi transformado em pedra, por seu pecado. Mamãe enganou-me, enganou Midori, enganou a todos. Deus! Que espécie de demônio terrível tomou conta dela? Sim, foi isso o que aconteceu. Foi mamãe, ela própria, que usou a palavra "pecado" em seu diário: "Eu e Misugi, nós seremos pecadores. E visto ser impossível deixarmos de ser pecadores, seremos grandes pecadores". Por que não usou ela as palavras "possuída pelo demônio"? Pobre, pobre mamãe, mais ainda que o lobo que ludibriou o coelhinho! E, todavia, mamãe e você decidiram tornar-se pecadores, grandes pecadores. Esse amor, que não se pode realizar sem pecado, que lamentável deve ser! Quando eu era pequena, alguém comprou-me um peso de papel numa feira, uma flor artificial, vermelha, dentro de um globo de vidro. Apanhei-o nas mãos e fui-me embora, mas, subitamente, comecei a chorar. Ninguém poderia ter imaginado por quê. Pétalas congeladas, imóveis no vidro frio, pétalas que não se moviam no outono ou na primavera, pétalas dadas à morte. Ao pensar no que deviam sentir essas pétalas, eu subitamente enchi-me de aflição. Essa mesma aflição retorna a mim. Seu amor com mamãe era igual a essas pétalas. ”
A Carta de Midori: e o haori de seda
“ ... Foi em fevereiro de 1934. Por volta de nove da manhã eu estava num quarto do Hotel Atami e recordo-me de ter visto você, de terno cinza, num rochedo exatamente sob o meu quarto. Esta história ocorreu há muitos e muitos anos, num dia agora impreciso como um sonho. Ouça-me, pois com a calma no coração. Como feriu-me os olhos aquele haori de seda com brilhantes cardos! Quem o usava era uma mulher alta e bela, que seguia você. Eu não esperava ver meu pressentimento tão exatamente confirmado. Para saber se tinha ou não fundamento, acabara de chegar. Viera pelo noturno, sem mesmo tirar um cochilo. Para usar uma frase banal, estivera sonhando e queria despertar. Naquele tempo, eu estava com vinte anos (a idade atual de Shoko). O abalo, decerto, foi grande demais para uma jovem recém-casada, que ignora o a-be-cê da vida. Assim que chamei o boy e paguei a conta (fazendo com que isso parecesse natural, pois ele estava imaginando o que poderia ter acontecido), saí para o ar livre. Sentia que não seria capaz de ficar sentada no quarto, quieta. Por um momento parei diante do hotel, na calçada, porém uma dor escaldante apertou-me o peito, e eu hesitei, sem saber se tomava a direção do mar ou da estação. Dei alguns passos na direção da praia, mas antes de caminhar cinquenta metros, tornei a parar. Olhava para o mar de inverno, brilhante ao sol como se manchado pelo azul da prússia espremido de um tubo. Depois de algum tempo, voltei as costas ao mar e, mudando de ideia, tomei o rumo da estação. Agora, ao recordar isso, compreendo que esse ato conduziu-me a esta hora, a este lugar. Se eu tomasse a direção do mar, onde você estava, eu teria encontrado em mim outra pessoa. Todavia, por sorte ou por azar, não foi isso que fiz. Mas, com certeza, esse foi o ponto crítico de minha vida. ”
A Carta de Saiko: e a cobra australiana
“ ... Quem imaginaria a existência de outra pessoa, diferente daquela sobre a qual escrevo? (Você pode achar este um modo presunçoso e desagradável de expressar isso, mas não me ocorre outro.) Sim, numa mulher chamada Saiko havia outra, que ela própria não conhecia. Outra que você jamais conheceu e com a qual nunca sonhou.
Uma vez você disse que toda gente tem no corpo uma cobra. Disse-o no dia em que foi ver o dr. Takeda, no Departamento de Ciências da Universidade de Kyoto. Enquanto você falava com ele, fiquei à sua espera no corredor daquele sombrio edifício de tijolos vermelhos. Passei o tempo todo olhando, uma depois da outra, as cobras que ali estavam à mostra em recipientes de vidro. Quando você voltou, uma hora depois, eu estava nauseada.
Você olhou para os vidros e disse, como quem brinca:
— Esta é Saiko, esta é Midori, e esta cobra sou eu. Toda gente traz dentro de si uma cobra. Não precisa horrorizar-se.
A cobra de Midori era sépia, provinha do sul da Ásia, e a que você indicou para mim era pequenina, australiana, completamente coberta de pintas brancas, com uma cabeça aguda, de verruma. Que queria você dizer com tais palavras? Jamais perguntei-lhe, mas suas palavras me impressionaram estranhamente e nunca consegui esquecê-las. Não raro perguntava a mim mesma qual seria a cobra das pessoas e, às vezes, pensava que talvez fosse o egoísmo, o ciúme, ou o destino.
Mesmo agora não sei o que é, mas certamente, como você disse naquele momento, uma cobra tem vivido dentro de mim. Hoje, pela primeira vez, essa cobra fez sua aparição. Essa outra pessoa que sou e que eu sequer conhecia – aquela que não pode ser chamada por nenhum outro nome, senão o de cobra. ”