A felicidade conjugal
Autor
Lev Tolstoi
Editora
Centaur
Tradução
Luís Cardoso
A mesma realidade porém terrivelmente mudada
“ … Entretanto chegou a primavera. Macha e Sónia foram passar o verão para o campo. A nossa casa de Nikolski ficou em obras e fomos residir para Pokrovski. Era sempre a nossa velha habitação com o seu terraço, a sua mesa de abas e o seu piano na imensa sala luminosa, o meu antigo quarto com as suas cortinas brancas, e os meus sonhos de donzela que parecia terem sido esquecidos ali. Neste quarto havia duas camas, uma que tinha sido a minha e onde à noite eu ia abençoar o bochechudo Nikolai no meio das suas traquinices e a outra caminha onde se entrevia a carinha de Ivan saindo dos seus cueiros. Depois de os ter abençoado, ficava muitas vezes no meio deste quarto tão pacífico e de repente, de todos os ângulos das suas paredes e do fundo dos seus cortinados, elevavam-se visões esquecidas da minha mocidade que começavam a entoar antigos estribilhos de canções infantis. E o que era feito dessas visões? O que era feito dessas graciosas e meigas canções? Tudo o que eu mal ousara esperar cumprira-se. Os mais confusos e os mais complicados sonhos haviam-se realizado e era esta mesma realidade que tornava a minha vida tão pesada, tão difícil, tão despojada de alegria. E contudo, em torno de mim não ficou tudo como era dantes? Não era o mesmo aquele jardim que eu via da janela, aqueles mesmos terraços, aqueles mesmos caminhos, aqueles bancos? Ao longe, os cantos dos rouxinóis parecem sempre sair das águas do lago, os lilases florescem como antigamente e como outrora a lua espalha a sua claridade sobre a nossa casa, e todavia, tudo está tão terrivelmente mudado para mim, mudado para além do possível! “