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A lua vem da Ásia
Autor
Campos de Carvalho
Editora
José Olympio
Tradução
Errâncias de um desmiolado
“... Em Cochabamba, na Bolívia, num concurso para coveiros instituído pela
municipalidade, obtive o segundo lugar, o que me valeu um contrato por dois anos
com direito a dormir no cemitério. Pablo Morales, que foi nomeado comigo e obteve
o primeiro lugar devido à sua larga experiência agrícola, era de pouca conversa e
tinha verdadeira paixão pelo seu métier, ficando irritadiço e insuportável quando
não tínhamos nada a fazer e nos víamos obrigados a cruzar os braços, como
mineiros em greve. O que nos valia eram as revoluções constantes no país, que nos
davam sempre um trabalho intensivo durante uma semana ou duas – ou então
uma ou outra epidemia imprevista e fulminante, que arrasava com pelo menos um
terço da população. De uma feita chegamos a receber duzentos mortos de uma
localidade vizinha, onde ocorrera um terremoto de magníficas proporções e que
proporcionou a Pablo (e a mim também) alguns serões maravilhosos, à pálida luz
da lua.
Acusados de furto e violação de sepulturas, tivemos que escapar nos às
pressas numa noite de chuva e refugiar-nos em território peruano, onde Pablo foi
morto a tiros por um caçador de codornas e eu, faminto, me identifiquei como
sobrinho do rei da Bessarábia, até que pudessem provar o contrário. Em Cuzco
tomei-me de amores por uma rapariga que não sabia uma só palavra de árabe,
nem eu tampouco, e pude manter-me dignamente à sua custa durante alguns
meses, até que o governo me deportou para a ilha de Sumatra num cargueiro que
levava lhamas, algumas bugigangas de grosseira fabricação e meia dúzia de
espiões comunistas. Da ilha de Sumatra pulei, não sei como, para a de Madagáscar,
de onde alcancei a nado a costa de Moçambique, batendo todos os recordes de
distância, mas incógnito. Empreguei-me como professor de natação na cidade de
Beira, onde, falando embora o português, não conseguia entender o português
deles e tive necessidade de arranjar um intérprete mestiço, que me roubou as
poucas economias que eu tinha e ainda me levou o cação de banho, obrigando-me
a mudar temporariamente meu sistema de ensino, que de prático passou a teórico.
Nas horas vagas compunha poemas futuristas, que um de meus alunos se
incumbia de traduzir para o português local e eram publicados, às quintas-feiras,
no Observador Econômico e Financeiro – seção feminina. Demitido a bem do
serviço público, inscrevi-me numa maratona de danças e fui transportado semi-
inconsciente para um hospital de tuberculosos, onde vim a falecer na madrugada
de 15 de setembro de 1934. Mas o atestado de óbito fora passado um pouco às
pressas e obtive alta dois meses depois, mais forte do que um da Pomerânia ou de
qualquer outra parte do globo...“