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A morte de um apicultor

Autor

Lars Gustafsson

Editora

Marco Zero

Tradução

Mirian Paglia Costa

Recomeçamos. Não nos rendemos.

“… Eu pensava:

Engraçado. Em mim, tudo está claro, calmo, vazio. Há o canto desses pássaros, a luz vermelha que brinca sobre esse órgão de pedra e esse gosto de café amargo em minha boca. Não mais reprimendas, não mais lembranças, não mais angústia. Suspenso num giroscópio. Estou vazio, limpo e claro. Quase não tenho mais o sentimento de possuir uma alma, hoje em dia.



Talvez eu tenha conseguido finalmente. Talvez, à força de tanto falar, eu a tenha dissipado.



— Would you like some more coffee?



A tempestade se acalmou. O vento já não sopra. Ou talvez eu tenha aprendido a me mover com a rapidez do vento e, assim, não o perceba mais. Amáveis leitores, surpreendentes leitores. A gente recomeça. A gente não se rende. Pela quinta e última vez, recomeçamos. Como em Västmanland, minha terra natal, os velhos e manhosos sabujos na caça aos alces. Aliás, a caça aos alces está aberta agora. E, como velhos sabujos, retomamos a pista lá onde a havíamos deixado e a seguimos até que chegue à presa sanguinolenta.



Recomeçamos. Estamos no início da primavera, em 1975; nossa narrativa se inicia exatamente no momento do degelo. A ação se desenrola no norte de Västmanland.



Quando foi fechada a escola primária de Enora, na margem norte do lago, o professor de Väster Våla, Lars Lennart Westin, teve sua aposentadoria antecipada. Ele vive de um pouco de tudo e de nada e principalmente do mel que colhe em suas colmeias. Houve um tempo em que elas eram bastante numerosas. Desde seu divórcio, ele mora num pequeno sítio em Näset, na altura das cidades de Vretarna e de Bodarna, mas na margem oriental do lago, é claro. Tem uma pequena horta, um campo de batatas e um cão. Às vezes, recebe a visita de parentes. Ele tem telefone, televisão, é assinante do Jornal de Västmanland. Desde seu divórcio, não conheceu mulheres que valessem a pena ser mencionadas.

L.L.W. não é muito velho. Nasceu em 17 de maio de 1936. Mas aparenta bem mais de quarenta anos, está gasto, magro, tem pouco cabelo. Usa óculos de metal que acentuam ainda mais a impressão de magreza. Suas posses são extremamente modestas, mas não é este o seu problema.



As páginas que seguem se compõem das notas que deixou. De fato, na primavera de 1975, no momento preciso do degelo, ele compreende que antes do outono terá desaparecido. Tem um câncer fatal de pâncreas, um câncer localizado tarde demais, que se espalhou em incurável metástase pelos tecidos em volta.



A voz que vocês vão ouvir, a partir de agora, é a voz dele, não a minha. Razão pela qual aqui me despeço.”



O Paraíso: um gozo inaudito que se prolonga para sempre?



“… Entre todas as coisas em que eu podia pensar, me pus a pensar no Paraíso. Também comecei a lixar a porta da rua, ela precisa de pintura nova, a velha se lascou no inverno e está descascando. Descobri, sem procurar, três latas de tinta num armário da cozinha, deviam estar lá desde o início dos anos 60, quando me casei.



O Paraíso apresenta problemas interessantes. O que é um estado de felicidade que se prolonga infinitamente?



Pensa-se imediatamente no orgasmo. Um grande, um feliz orgasmo que de repente surpreende você por não acabar. Ele se prolonga, minuto a minuto, hora após hora. Tão intenso, a tal ponto abrasador, que se compreende que alguma coisa inaudita está acontecendo, começa-se a desejar nem que seja um décimo de segundo para respirar, nada além de um décimo de segundo para poder refletir, mas o gozo inaudito se prolonga, se prolonga, não se deixa dobrar, continua horas a fio…



O Paraíso? Tudo isso, acabei de conhecer.



O Paraíso deve ser quando a dor passa. Mas isso quer dizer que, desde que não tenhamos dores, vivemos no Paraíso! E nem sabemos!



Benditos e malditos vivem no mesmo mundo e nem se vêem!



Tenho a sensação, neste último mês, de ter dado a volta em minha vida dentro de algum labirinto fantástico e maravilhoso e de ter voltado exatamente ao meu ponto de partida. Apenas, como estive fora das dimensões normais, a direita e a esquerda se inverteram. Minha mão direita, agora, é a mão esquerda; minha mão esquerda virou mão direita.



Voltei ao mesmo mundo e descubro que ele é bom.



As lascas de pintura na porta fazem parte de uma misteriosa obra de arte.



(Caderneta amarela IV: 3)”

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