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As boas mulheres da China: Vozes ocultas

Autor

Xinran

Editora

Companhia das Letras

Tradução

Manoel Paulo Ferreira

Filhotes de lacaios proibidos de comer filhotes de galinhas

“... Um dia levei meu irmão, que ainda não tinha três anos, para o fim da
fila da cantina, que estava excepcionalmente comprida. Devia ser dia de alguma
celebração nacional, pois era a primeira vez que vendiam frango assado e por toda
parte sentia-se o cheiro delicioso. Ficamos com água na boca, porque fazia muito
tempo que só comíamos sobras, mas sabíamos que para nós não haveria frango.
De repente meu irmão começou a chorar, gritando que queria frango. Com
medo de que o barulho irritasse os guardas vermelhos e de que nos pusessem para
fora, deixando-nos sem comida alguma, fiz o melhor que pude para convencê-lo a
parar de chorar. Mas ele, cada vez mais agitado, continuou chorando. Eu, de tão
preocupada, também estava à beira das lágrimas. Nisso uma mulher de ar
maternal passou por nós. Pegou um pedaço da sua porção de frango assado, deu
ao meu irmão e foi em frente, sem dizer uma palavra. Meu irmão parou de chorar,
e estava prestes a começar a comer quando um guarda vermelho veio correndo,
tirou-lhe a coxa de frango da boca, jogou-a no chão e esmagou-a com os pés.
“Seus filhotes de lacaios do imperialismo! Acham que também podem comer
frango, é?”, berrou. Meu irmão ficou assustado demais para se mexer. Não comeu
nada naquele dia, e por muito tempo nunca mais chorou por causa de frango
assado ou qualquer outro luxo assim. Muitos anos mais tarde perguntei-lhe se
lembrava do incidente. Ainda bem que não lembrava de nada. Eu, porém, jamais
consegui esquecer. “

A moeda de troca mais valorizada, a mulher, sem direitos de propriedade ou herança

“... A colina dos Gritos fica na faixa de terra onde o deserto já avança sobre
o planalto. Faz milhares de anos que o vento sopra incansavelmente, o ano inteiro.
Geralmente só se enxerga à distância de alguns passos nas tempestades de areia,
e os aldeães, trabalhando na colina, têm que gritar para se comunicar uns com os
outros. Por essa razão, as pessoas do lugar são famosas pela voz alta e ressonante.

Ninguém soube confirmar se foi esse o motivo de a colina dos Gritos ter ganhado o
nome, mas achei que fosse provável. O lugar é completamente isolado do mundo
moderno. Nas moradias pequenas e baixas, dentro das cavernas, vivem de dez a
vinte famílias, que têm só quatro sobrenomes diferentes. As mulheres são
valorizadas apenas pela sua utilidade: na qualidade de instrumentos de reprodução,
são o artigo de comércio mais precioso na vida dos moradores. Os homens não
hesitam em trocar duas ou três filhas pequenas por uma esposa de outra aldeia. A
prática mais comum é casar uma mulher da família e arrumar uma esposa em
outra aldeia, por isso a maioria das mulheres da colina dos Gritos vem de fora.
Depois de se tornarem mães, são forçadas a ceder as filhas. Na colina dos Gritos, a
mulher não tem direitos de propriedade nem de herança.
Ali também ocorre a prática social incomum de uma esposa ser dividida
entre vários maridos. Na maioria desses casos, são irmãos extremamente pobres,
sem mulheres para trocar, que compram uma esposa e a compartilham entre si
para dar continuidade à família. De dia beneficiam-se da comida e dos trabalhos
domésticos que ela faz, e à noite desfrutam do seu corpo. Se tem um filho, nem ela
mesma é capaz de dizer quem é o pai. A criança se refere a Papai Grande, Segundo
Papai, Terceiro Papai, e assim por diante. Os aldeães não consideram a prática
ilegal, porque se trata de um costume estabelecido há muitas gerações, o que o
torna mais poderoso do que a lei. Também não zombam das crianças que têm
muitos pais, pois elas gozam da proteção e da propriedade de vários homens.
Ninguém sente compaixão alguma pelas esposas compartilhadas; para eles, a
existência das mulheres é justificada pela sua utilidade.
Seja qual for a aldeia de onde sejam originárias, as mulheres logo adotam
os costumes que foram transmitidos geração após geração na colina dos Gritos.
Levam uma vida duríssima. Nas casas-cavernas, com só um cômodo, cuja metade
é ocupada pelo kang, seus aparelhos domésticos consistem em algumas placas de
pedra, esteiras de capim e tigelas de argila grosseira; um jarro de cerâmica é
considerado um luxo que só se encontra em “famílias abastadas”. Nessa sociedade,
brinquedos para as crianças ou artigos para uso especificamente feminino são
considerados impensáveis. Como as mulheres da família são a moeda que compra
esposas, estas têm que suportar o ressentimento dos parentes que sentem
saudade das filhas ou irmãs que foram trocadas, e trabalhar dia e noite para
atender às necessidades diárias da família inteira. “

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Xinran

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Xinran

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