As pequenas virtudes
Autor
Natalia Ginzgurg
Editora
Companhia das Letras
Tradução
Maurício Santana Dias
Um bem que a guerra pode dar: estar perto da substância das coisas
“ … Uma vez sofrida, jamais se esquece a experiência do mal. Quem viu as casas desabando sabe muito bem quanto são precários os vasos de flor, os quadros, as paredes brancas. Sabe muito bem de que é feita uma casa. Uma casa é feita de tijolos e argamassa, e pode desabar. Uma casa não é tão sólida. Pode desabar de um momento para outro. Atrás dos serenos vasos de flor, atrás das chaleiras, dos tapetes, dos pavimentos lustrosos de cera há o outro vulto verdadeiro da casa, o vulto atroz da casa caída.
Não nos curaremos nunca desta guerra. É inútil. Jamais seremos gente tranquila, gente que pensa e estuda e modela sua vida em paz. Vejam o que aconteceu com nossas casas. Vejam o que aconteceu com a gente. Nunca vamos ser gente sossegada.
Conhecemos a realidade em sua face mais terrível. Mas já nem sentimos mais desgosto. Ainda há alguns que se queixam de que os escritores se servem de uma linguagem amarga e violenta, que contam coisas duras e tristes, que apresentam a realidade em seus termos mais desolados.
Nós não podemos mentir nos livros, nem podemos mentir em nenhuma das coisas que fazemos. E talvez este seja o único bem que nos veio da guerra. Não mentir e não tolerar que os outros mintam a nós. Assim somos, os jovens de agora, assim é a nossa geração. Os mais velhos ainda são muito apegados à mentira, aos véus e às máscaras que recobrem a realidade. Nossa linguagem os entristece e ofende. Não entendem nossa atitude diante da realidade. Nós estamos perto da substância das coisas. Esse é o único bem que a guerra nos deu, mas só nos deu a nós, jovens. Aos outros, mais velhos que nós, a guerra só trouxe insegurança e medo. E também nós, os jovens, temos medo, também nós nos sentimos inseguros em nossas casas, mas não estamos indefesos diante desse medo. Temos uma dureza e uma força que os outros, antes de nós, jamais conheceram. ”