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Blumfeld, um solteira de mais idade e outras histórias

Autor

Franz Kafka

Editora

Civilização Brasileira

Tradução

Marcelo Backes

Passar fome deixa de ser um espetáculo de circo

“ ... Mas apresentar um protesto junto à direção do circo ele também não ousava; de qualquer modo, devia aos animais a multidão de visitantes, entre os quais aqui e ali também se poderia encontrar algum destinado a ele, e quem sabe onde haveriam de escondê-lo se ele quisesse fazer com que se lembrassem de sua existência e com isso também que ele, de um ponto de vista rigoroso, era apenas um obstáculo no caminho aos estábulos.

Um pequeno obstáculo, contudo, um obstáculo que se tornava cada vez menor. Todo mundo se acostumava ao fato dado e acabado de ser estranho querer exigir atenção para um artista da fome nos tempos de hoje, e assim o veredicto acerca dele já estava proferido. Ele poderia passar fome tão bem quanto pudesse, e ele o fazia, mas nada mais poderia salvá-lo, simplesmente passam por ele. Tente-se explicar a arte da fome a alguém! A quem não a sente não se pode explicá-la. As belas inscrições ficaram sujas e ilegíveis, depois foram arrancadas, e a ninguém ocorreu trocá-las; a plaquinha com o número dos dias de fome que já haviam se passado, que nos primeiros tempos havia sido trocada diariamente com todo o cuidado, já há tempos continuava sempre a mesma, pois depois das primeiras semanas os empregados começaram a se aborrecer inclusive com esse pequeno trabalho; e assim o artista da fome continuava passando fome, como no passado teria sonhado em fazer, e o conseguia sem dificuldades, exatamente como havia previsto que conseguiria na época, mas ninguém contava os dias, ninguém, nem mesmo o próprio artista da fome sabia a grandiosidade de seu desempenho, e seu coração se fez pesado. E quando, em algum momento naquele tempo todo, um caminhante ocioso ficava parado, zombava da antiga cifra e falava em trapaça, isso não deixava de ser, nesse sentido, a mais estúpida das mentiras que a indiferença e a maldade inata poderiam inventar, pois não era o artista da fome que enganava, ele trabalhava dignamente, e sim o mundo que o enganava, não reconhecendo o que ele merecia.

Mas outra vez se passaram vários dias, e também isso chegou ao fim. Certa vez a jaula chamou a atenção de um guarda, e ele perguntou ao servo por que deixavam parada ali, sem usar, aquela jaula cheia de palha apodrecida da qual se podia fazer tão bom uso; ninguém sabia, até que alguém se lembrou do artista da fome com a ajuda da placa dos números. Reviraram a palha com barras de ferro e encontraram o artista da fome ali dentro.

— Tu continuas passando fome? — perguntou o guarda. — Quando enfim vais parar?

— Perdoem-me, todos vocês — sussurrou o artista da fome; apenas o guarda, que mantinha o ouvido junto às grades, o entendeu.

— Com certeza — disse o guarda, e botou um dedo na testa, insinuando assim o estado do artista da fome aos empregados. — Nós te perdoamos.

— Jamais deixei de querer que vocês admirassem minha capacidade de passar fome — disse o artista da fome.

— E nós também a admiramos — disse o guarda, mostrando estar de acordo.

— Mas vocês não deviam admirá-la — disse o artista da fome.

— Pois bem, então não a admiraremos — disse o guarda —, mas por que não devemos admirá-la?

— Porque eu preciso passar fome, porque não consigo agir de outro modo — disse o artista da fome.

— Mas olha só — disse o guarda —, e por que tu não consegues agir de outro modo?

— Porque eu — disse o artista da fome, levantou a cabecinha um pouco e falou de lábios estreitados, como se prontos para beijar o ouvido do guarda, a fim de que nada se perdesse —, porque eu não consegui encontrar a comida que me agrada. Se eu a tivesse encontrado, acredita em mim, eu não teria causado sensação e comeria até me encher como tu e todos os outros.

Essas foram suas últimas palavras, mas ainda em seus olhos vidrados podia ser vista a firme, ainda que já não mais orgulhosa, convicção, de que ele continuava passando fome.”

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Franz Kafka

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Franz Kafka

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