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Budapeste

Autor

Chico Buarque

Editora

Companhia das Letras

Tradução

Modéstia à parte

“... (...) Mas era para eu ajudá-la com o vestido, e ao fechá-lo, vi se formar
em sua pele uma ligeira dobra, que o zíper por pouco não beliscou. Deu-me um
beijo no rosto, saiu em disparada, alcancei-a pelo braço no hall, e ali ela se
lembrou que também me havia comprado um presente. Puxou da bolsa um
pequeno embrulho, e pelo formato adivinhei que era um livro. Nem precisei
adivinhar que livro era, porque a embalagem estava troncha, e dava para ver um
pedaço da capa mostarda e as letras góticas. Desculpou-se por tê-lo aberto no
avião; já o tinha lido duas vezes e não resistira a uma terceira leitura: é
absolutamente admirável. Entrou no elevador e com a porta fechada repetiu:
absolutamente admirável.
Referências de viva voz a meu trabalho, elogiosas ou não, aprendi a ouvi-las
impassível, desde o tempo em que me misturava ao povo para acompanhar
discursos políticos recém-escritos. Já quando comecei a escrever para a imprensa,

me aprazia entrar nesses bares de Copacabana, onde homens solitários passam a
tarde a tomar chope ler os jornais. Caso encontrasse alguém entretido com um
artigo meu, me sentava à mesa ao lado, e era quase certo que daí a pouco o
sujeito comentasse o texto comigo, longe de suspeitar que fosse eu o autor. É que
comigo as pessoas sempre puxam assunto, julgando conhecer de algum lugar este
meu rosto corriqueiro, tão impessoal quanto o nome José Costa; numa lista
telefônica com fotos, haveria mais rostos iguais ao meu que assinantes Costa José.
Muitas vezes o sujeito já estava adiantado nos chopes e me cutucava, citava
trechos do artigo com entusiasmo, ou eventualmente com antipatia, menosprezo.
No primeiro caso eu me permitia fazer alguma ressalva, de maneira a inflamá-lo
mais ainda, levá-lo a se erguer no centro do bar e reler aos brados as frases mais
brilhantes; no caso contrário eu sempre lhe dava pronta razão, a fim de encerrar o
assunto. Mas depois de casado, nos dias em que estava seguro de haver escrito um
texto com grande inspiração, eu dispensava a opinião dos botequins; meu desejo
era o de que a Vanda o lesse. Então comprava vários exemplares do jornal e os
deixava com meu artigo à mostra no caminho dela, na mesa de jantar, em cima do
telefone, no berço do menino, junto ao espelho do banheiro. Ver a Vanda correr os
olhos sobre as minhas letras, esboçar um sorriso, apreciar um texto meu sem saber
que o era, seria quase como vê-la se despir sem saber que eu a estava olhando.
Mas não, ela pegava o jornal e revirava as páginas, olhava umas fotografias, lia as
legendas, a Vanda não tinha paciência para grandes leituras. Daí meu estupor ao
saber da sua boca que ela lera meu livro, não uma, mas três vezes. E menos mal
que estivesse tão apressada, e nem me olhasse ao dizer o que disse, porque
naquele instante me portei como um amador. Devo ter enrubescido, mordi meu
lábio inferior, meus olhos se encheram de água, tive pena e orgulho de mim, era
como se duas palavras dela reparassem sete anos de descaso. “

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Chico Buarque

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