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Duas Tardes

Autor

João Anzanello Carrascoza

Editora

Boitempo

Tradução

O toque físico entre pai e filho que elimina o peso da vida

“... Antes que a noite caísse e o menino não mais visse as coisas à luz de
seus pormenores, e como forma de enganar sua impaciência, ele enrolava o
cordel ao redor do pião e soltava o brinquedo no degrau da escada, vendo o girar,
girar, girar, aos seus pés, como a terra ao redor do sol. Às vezes, punha tanta
força, que o pião mal tocava no solo e saltava, eletrizado, escada abaixo,
debatendo-se nas quinas do canteiro como pássaro na mão de um homem,
coração sob o peito de um menino. E, assim, com um olho colado às rotações do
brinquedo, o outro ao movimento da rua, ele esperava o pai, sem saber que seu
gesto não dizia apenas, Estou aqui, pai, à tua espera, mas também, de forma
distraída, Eis em tuas mãos a minha vida.
Se o pai tivesse carro e apontasse na rua lá em cima, o menino o
reconheceria, mesmo se existissem outros carros da mesma cor e do mesmo

modelo transitando por ali – o raio sempre sabe de que sol partiu –, e sairia às
pressas, para abrir o portão da garagem. Mas o pai vinha a pé, saindo do céu que
anoitecia e, ao vê-lo, o menino, antes de correr para lhe abraçar, agitava-se feito
pião numa superfície fendida e entrava correndo na casa, a avisar a mãe, Papai
vem vindo, como se estivesse ali para vigiar a pedido dela, e não por si mesmo,
pelo gosto de ver, de repente, formar-se do nada o seu ídolo. Tanto que, depois
de avisar a mãe, o menino voltava à porta, descia a escada de dois em dois
degraus e atravessava o passeio, a passos compridos, a tempo de ver o pai
abrindo a tramela do portão e entrando no jardim de casa, o olhar de um
imantado no do outro, os dois esquecidos das roseiras e dos espinhos, nos
canteiros ao lado.
Hoje também sobem a escada juntos, dizendo lá umas palavras de ocasião,
Oi, filho, tudo bem? Tudo bem, o pai demorou tanto! Demorei um pouquinho,
apenas para gastar a voz, porque o silêncio lhes basta, e todo o peso da vida
desapareceria se eles se dessem as mãos – como nas vezes em que o pai levava
o menino ao estádio de futebol e o segurava com força, receando perdê-lo na
multidão, sem se dar conta de que a cada instante o perdia um pouco mais, e o
destino de um, apesar de emaranhado nas linhas da mão do outro, ia se
desgarrando, suavemente, e para sempre. “

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João Anzanello Carrascoza

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João Anzanello Carrascoza

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Boitempo

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