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Eles eram muitos cavalos

Autor

Luiz Rufatto

Editora

Boitempo

Tradução

Clarescuro verdescura claridões nas milhares de lajes assentada sobre parede sem reboco

“... 37. Festa
Idalina, como se necessário, calcou pé-ante-pé o quarto, embora
indiferente fosse o silêncio, agora que nada mais sente a amiga, mais nada.
Entretanto, assim entrou, no resguardo do respeito, evitando o esbarro nas coisas
impregnadas do clarescuro – cinco horas lá fora, outra tarde empurrada esgoto
abaixo, violetas agonizam em potes esturricados de margarina –: o lençol
marinho improvisada cortina vaza claridões do sol insosso.
No minúsculo cômodo cheirando a doença expõem-se: sobre a mesinha de
cabeceira um abajur de cúpula azul, o retrato de um bebê holocáustico, um copo
americano vazio, cartelas de remédio; os brancos braços magros de um cristo de
gesso contrastam com a verdescura parede úmida; um frágil guarda-roupa de
compensado; um tapete de barbante espichado no chão de tacos banguela. E, sob
rústicos lençóis de saco-de-estopa, abandonada, esqueleto estufando a pele
cinzenta, rija, ela.
Idalina cumpria o último (o único) desejo da amiga: vinha maquiá-la. Tão
vaidosa!, apresentar-se assim?, macérrima, agreste, ressequida, áspera,
encovada, careca?, qual africanas imagens do Jornal Nacional? Não! Suspirosa,
arredou uma banqueta para junto da cabeceira, ligou a luz do abajur (por que não
abria a janela?, receio de ofender a vista agora inútil?), despejou o estojo sobre a
cama. Havia apalavrado aquele desatino, toca a cumpri-lo. Conheciam-se desde
os doze anos, no RG a mesma idade, em agosto vinte e nove anos, Leão ambas,
ascendente em Virgem, ela, em Capricórnio, a amiga. Conheceram-se na sexta
série noturna, no Rio Pequeno. Idalina coadjuvava a mãe na feitura de coxinhas,
quibes, esfihas, rissoles, pasteizinhos, empadas que a amiga insistia para juntas
entregarem em aniversários, casamentos, noivados, despedidas. Há sempre uma
festa em algum lugar, na época impressionavam-se, e, à maneira, dela todos
participam, achavam, os que bebendo e comendo se divertem, os que
uniformizados passeiam bandejas entre vertedouros de convidados, os que
salgadinhos e docinhos constroem.
Quando crescer, ser médica, ajudar os semelhantes, anotava nas redações
da escola. À chave, mantinha um diário, livreto de capa preta, uma vez,
consentida, Idalina espiou, bobas aflições, alegriazinhas, bestas tristezas, miúdas
ocorrências de gentes emboloradas do Jardim D'Abril, no batente o pai ao longe, a
mãe próxima entretida na criação, seis irmãos mais, se estranhava com a mais-

velha, também, todos nascidos antes, não lhe davam pelota, acercou-se de
Idalina, os quitutes desculpa para estar juntas. Nem a diáspora da oitava série:
mantiveram-se confidentes no curso de maquiagem do Senac. Idalina
encarapitou-se num salão de beleza no Shopping Center Norte, arrumou-se pelos
lados do Jardim Brasil. A amiga conheceu um rapaz no Sandália de Prata da Rua
Pinheiros – "Gostou dele? Não é um gato? Heim?" –, submergiu numa das
milhares de lajes assentada sobre parede sem reboco, Zona Leste.
Idalina arranjou-se no Soho da Vila Madalena, bom salário, gorda gorjeta,
tempos em tempos captava novidades da amiga, a gravidez o bebê dois quilos e
seiscentos gramas quarenta centímetros o marido canalha mulherengo gastador
queimava na cocaína
o que ela ganhava de manicure pedicure
cabeleireira nos fundos do barraco no Parque São Lucas
o que ela ganhava de lavadeira e tomadeira
de conta de criança
o que ela ganhava vendendo chupe-chupe
no cingapura de Sapopemba
e enchia ela de porrada
instalado paxá no quarto más companhias
a polícia invadindo a casa, uma humilhação. “

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