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Histórias naturais

Autor

Marcílio França Castro

Editora

Companhia das Letras

Tradução

Uma saraivada violenta de frases mortais, datilografadas

“ ... Com Hemingway, passei no estúdio bem mais tempo do que no primeiro filme. Foram dois meses de gravação. Além das entradas datilográficas, fiz também sequências a lápis, simulando leituras de revisão. Era para evitar problemas de continuidade. Hemingway datilografava, mexia, datilografava de novo. Em seu apartamento em Paris, em hotéis na Espanha, na Itália, em Constantinopla. A Corona era portátil, podia ser levada para qualquer lugar. Alemanha. Suíça. Tirei um mês de férias, quase fui parar em Esmirna. Gravaram na Europa e nos Estados Unidos, mas o dublê não era necessário. Na preparação das cenas, o ator que fez Hemingway achou que deveria caçar e pescar. Caiu de um barranco, feriu a perna no arame, quase teve uma gangrena. As filmagens ficaram paradas um tempo por causa disso.

À noite, num quarto de hotel, o copo de uísque sobre a mesa, ao alcance da mão — a cena se passa em Madri, me lembro bem dela. Eu abastecia a máquina, ajustava a folha no rolo. Na bancada, uma bagunça de papéis e notas manuscritas. "The Killers”, em letra miúda, era o título no alto da página. Conto escrito em 16 de maio de 1926. Eu tinha até memorizado alguns trechos, mas a cola estava ali. O diretor dava o sinal, eu esperava alguns segundos, soltava os dedos numa rajada. Uma frase, ponto. Silêncio. Outra frase, ponto. "What's the idea?” Nick asked. Eu imaginava um leão na savana, imaginava um peixe no fundo do rio. “There isn’t any idea.” Eu levantava o copo, levava-o à boca, devolvia-o à mesa. Silêncio. Uma saraivada violenta de frases à queima-roupa. Saía faísca do papel. “What do yoy think it’s all about?” Silêncio. Eu pensava num soldado, um soldado à espreita. O soldado levanta a cabeça, atira, encolhe-se de novo na trincheira. Pensava num boxeador. Ele ginga, se esquiva, recua. Seus dedos estão atados como se fossem uma coisa só, esperando a brecha. “What do you think’s going to happen?” Silêncio. Eu puxava a alavanca, rodava o cilindro. Recarregava, engatilhava. A câmera grudada nos meus dedos. O estúdio em silêncio. “Nothing.” Eu levantava as mãos do teclado, estalava os dedos um no outro. O peixe, o lutador, o soldado. Todos deveriam estar lá, no intervalo entre uma frase e outra, no centro do silêncio. Meus vinte anos de silêncio no serviço público. Vinte anos concentrados entre um disparo e outro, a parte oculta do meu iceberg. "They did not say anything." Na minha cabeça, vinha então o trecho final, o último golpe, e eu disparava em bloco, de uma só vez. "They'll kill him." As folhas tombavam no chão, uma a uma.”

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Marcílio França Castro

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Marcílio França Castro

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