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Livro do desassossego

Autor

Fernando Pessoa

Editora

Companhia das Letras

Tradução

Momento

“... 39.
De repente, como se um destino médico me houvesse operado de uma
cegueira antiga com grandes resultados súbitos, ergo a cabeça, da minha vida
anônima, para o conhecimento claro de como existo. E vejo que tudo quanto tenho
feito, tudo quanto tenho pensado, tudo quanto tenho sido, é uma espécie de
engano e de loucura. Maravilho-me do que consegui não ver. Estranho quanto fui e
que vejo que afinal não sou.
Olho, como numa extensão ao sol que rompe nuvens, a minha vida passada;
e noto, com um pasmo metafísico, como todos os meus gestos mais certos, as
minhas ideias mais claras os meus propósitos mais lógicos, não foram, afinal, mais
que bebedeira nata, loucura natural, grande desconhecimento. Nem sequer
representei. Representaram-me. Fui, não o ator, mas gestos dele.
Tudo quanto tenho feito, pensado, sido, é uma soma de subordinações, ou a
um ente falso que julguei meu, por que agi dele para fora, ou de um peso de
circunstâncias que supus ser o ar que respirava. Sou, neste momento de ver, um
solitário súbito, que se reconhece desterrado onde se encontrou sempre cidadão.
No mais íntimo do que pensei não fui eu.
Vem-me, então, um terror sarcástico da vida, um desalento que passa os
limites da minha individualidade consciente. Sei que fui erro e descaminho, que
nunca vivi, que existi somente porque enchi tempo com consciência e pensamento.
E a minha sensação de mim é a de quem acorda depois de um sono cheio de
sonhos reais, ou a de quem é liberto, por um terramoto, da luz pouca do cárcere a
que se habituara.
Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta
noção repentina da minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre
viajando sonolentamente entre o que sente e o que vê.
É tão difícil descrever o que se sente quando se sente que realmente se
existe, e que a alma é uma entidade real, que não sei quais são as palavras
humanas com que possa defini-lo. Não sei se estou com febre, como sinto, se
deixei de ter a febre de ser dormidor da vida. Sim, repito, sou como um viajante
que de repente se encontre numa vila estranha sem saber como ali chegou; e
ocorrem-me esses casos dos que perdem a memória, e são outros durante muito
tempo. Fui outro durante muito tempo – desde a nascença e a consciência –, e
acordo agora no meio da ponte, debruçado sobre o rio, e sabendo que existo mais
firmemente do que fui até aqui. Mas a cidade é-me incógnita, as ruas novas, e o

mal sem cura. Espero, pois, debruçado sobre a ponte, que me passe a verdade, e
eu me restabeleça nulo e fictício, inteligente e natural.
Foi um momento, e já passou. Já vejo os móveis que me cercam, os
desenhos do papel velho das paredes, o sol pelas vidraças poeirentas. Vi a verdade
um momento. Fui um momento, com consciência, o que os grandes homens são
com a vida. Recordo-lhes os atos e as palavras, e não sei se não foram também
tentados vencedoramente pelo Demônio da Realidade. Não saber de si é viver.
Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é
ter subitamente a noção da mônoda íntima, da palavra mágica da alma. Mas essa
luz súbita cresta tudo, consume tudo. Deixa-nos uns até de nós.
Foi só um momento, e vi-me. Depois já não sei sequer dizer o que fui. E, por fim,
tenho sono, porque, não sei porquê, acho que o sentido é dormir. “

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Fernando Pessoa

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