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Memorial de Aires

Autor

Machado do Assis

Editora

Edigraf

Tradução

O velho conselheiro e a nostalgia diante do progresso

“... Sábado.

Ontem encontrei um velho conhecido do corpo diplomático e prometi ir jantar com ele amanhã em Petrópolis. Subo hoje e volto segunda-feira. O pior é que acordei de mau humor, e antes quisera ficar que subir. E daí pode ser que a mudança de ar e de espetáculo altere disposição do meu espírito. A vida, mormente nos velhos, é um ofício cansativo.

Segunda-feira.

Desci de Petrópolis. Sábado, ao sair a barca da Prainha, dei com o Desembargador Campos a bordo, e foi um bom encontro, porque daí a pouco o meu mau humor cedia, e cheguei a Mauá já meio curado. Na estação de Petrópolis estava restabelecido inteiramente.

Não me lembra se já escrevi neste Memorial que o Campos foi meu colega de ano em São Paulo. Com o tempo e a ausência perdemos a intimidade, e quando nos vimos outra vez, o ano passado, apesar das recordações escolásticas que surgiram entre nós, éramos estranhos. Vimo-nos algumas vezes, e passamos uma noite no Flamengo; mas a diferença da vida tinha ajudado o tempo e a ausência.

Agora na barca fomos reatando melhor os laços antigos. A viagem por mar e por terra era de sobra para avivar alguma coisa da vida escolar. Bastante foi; acabamos lavados da velhice.

Ao subir a serra as nossas impressões divergiram um tanto. Campos achava grande prazer na viagem que íamos fazendo em trem de ferro. Eu confessava-lhe que tivera maior gosto quando ali ia em caleças tiradas a burros, umas atrás das outras, não pelo veículo em si, mas porque ia vendo, ao longe, cá embaixo, aparecer a pouco e pouco o mar e a cidade com tantos aspectos pinturescos. O trem leva a gente de corrida, de afogadilho, desesperado, até à própria estação de Petrópolis. E mais lembrava as paradas, aqui para beber café, ali para beber água na fonte célebre, e finalmente a vista do alto da serra, onde os elegantes de Petrópolis aguardavam a gente e a acompanhavam nos seus carros e cavalos até à cidade, alguns dos passageiros de baixo passavam ali mesmo para os carros onde as famílias esperavam por eles.

Campos continuou a dizer todo o bem que achava no trem de ferro, como prazer e como vantagem. Só o tempo que a gente poupa! Eu, se retorquisse dizendo-lhe bem do tempo que se perde, iniciaria uma espécie de debate que faria a viagem ainda mais sufocada e curta. Preferi trocar de assunto e agarrei-me aos derradeiros minutos, falei do progresso, ele também, e chegamos satisfeitos à cidade da serra.  



O velho conselheiro e a complacência diante de quem rouba mas faz



“... 17 de outubro.

...Vou ocupar o tempo em reler uns papéis velhos que o meu criado José achou dentro de uma velha mala e me trouxe agora. A cara dele tinha a expressão de prazer que dá o serviço inesperado; aquele gosto de descobrir papéis que podem ser importantes fazia-o risonho, olhos escancarados, quase comovido.

— Vossa Excelência talvez os procure há muito tempo.

Eram cartas, apontamentos, minutas, contas, um inferno de lembranças que era melhor não se terem achado. Que perdia eu sem elas? Já não curava delas; provavelmente não me fariam falta. Agora estou entre estes dois extremos, ou lê-las primeiro, ou queimá-las já. Inclino-me ao segundo. Ante mim continuava o meu José com a mesma expressão de gosto que lhe deu o achado. Naturalmente agradecia à sua boa Fortuna que lho deparou: contará que é mais um elo que nos prenda. Talvez a idéia que o levou à mala fosse a esperança de algum valor extraviado, uma jóia, por exemplo, ou ainda menos, uma camisa, um colete, um lenço, e sendo assim o silêncio era mui possível. Achou papéis velhos, veio fielmente entregar-mos.

Não lhe quero mal por isso. Não lho quis no dia em que descobri que ele me levava dos coletes, ao escová-los, dois ou três tostões por dia. Foi há dois meses, e possivelmente já o faria antes, desde entrou cá em casa. Não me zanguei com ele; tratei de acautelar os níqueis, isso sim; mas, para que não se creia descoberto, lá deixo alguns, uma vez ou outra, que ele pontualmente diminui: não me vendo zangar é provável que me chame nomes feios, descuidado, tonto, papalvo que seja... Não lhe quero mal do furto nem dos nomes. Ele serve bem e gosta de mim; podia levar mais e chamar-me pior.

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Machado do Assis

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Machado do Assis

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citoliteratos

Idealizado por Afonso Machado - Todos os direitos reservados

Design e mentoria por Victor Luna

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