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Minha mãe se matou sem dizer adeus

Autor

Evandro Affonso Ferreira

Editora

Record

Tradução

Ser naturalmente atormentado

“... (...)Três jovens engravatados sentados aqui atrás discutem negócios. São
dinâmicos. Domingos chuvosos não intimidam seus espíritos empreendedores. Um
dia saberão que não há dinheiro no mundo que aplaque a fúria da decrepidez.
Minha mãe joga bola comigo no quintal; fica no gol improvisado entre dois
troncos de mangueiras; generosa, transforma-me num autêntico artilheiro.
Rimos. Não está bêbada: ainda é cedo. Três dias depois foi sua vez de fazer gol
contra: matou-se. Brincava comigo feito menino. Mulher-moleque: partiu sem
dizer adeus. Vida toda vivi na orfandade materna; acostuma-se nunca. Deve ser
bom ter mãe mesmo para se aborrecer com seus excessivos cuidados. Mas sei
que sobrevivendo cuidaria dela: faria chá de boldo para aquietar suas infinitas
manhãs de ressaca. Seria talvez seu marchand amador vendendo seus quadros
ruins nas feiras de domingo. Ou seria quem sabe o único parente a visitá-la no
hospício. Lucubrações inúteis: ela interrompeu possíveis desventuras cortando a

teia da própria vida. Mãe de amiga filósofa diz num trecho da carta-despedida que
estava ausente de chão firme; que estava trafegando sem solo sem margem sem
determinação; barco à deriva; que procurou atalhos-desvios mas se deixou
perder neles; que se esforçou inutilmente para não cair no fosso. Sim: difícil
resistir às vertigens da beira do abismo. Viver é desequilibrar-se amiúde. A
palavra é meu parapeito; escrever para não ceder. Senhora septuagenária na
quinta mesa à direita disse-me agora que se pudesse viveria outro tanto e que
amou muito o extinto marido e que tem filhos bem-sucedidos e netos bem-
encaminhados e que meu olhar é triste e que o dia não ficará nublado para
sempre. Recuso-me a iniciar diálogo telepático: a aparente felicidade em excesso
é insultante. Apenas sorrio para não me mostrar indelicado; a descortesia não faz
parte do séquito da decrepidez. Deve ser bom passar boa parte da vida em paz
consigo mesmo; estoicismo exemplar. Sou naturalmente atormentado. Às vezes
penso que um grande amor aquietaria minha inquietude. Poderia ser à
semelhança de Abelardo Heloisa. Em vez de catalogar decrepitudes estaria agora
nesta masmorra moderna escrevendo cartas encantadoras. “

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Idealizado por Afonso Machado - Todos os direitos reservados

Design e mentoria por Victor Luna

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