O ar que me falta
Autor
Luiz Schwarcz
Editora
Companhia das Letras
Tradução
Absurdos e mistérios que tecem nossas vidas
“... Curiosamente, passados anos do campeonato de judô, o descontrole no manejo da minha própria força atingiu o meu pai. Estávamos em Atibaia, e por alguma brincadeira boba nos atracamos na beira da piscina. Era para ser apenas uma brincadeira, sem uso de força, mas eu me descontrolei e apliquei no André um koshi guruma, um golpe dos tempos do judô. Ele, um ex-boxeur, bem mais forte que eu, voou por sobre as minhas costas e caiu no chão. Como não esperava por aquilo e não sabia como cair, técnica que aprendemos na academia, meu pai se enfureceu. Seu rosto ficou todo vermelho e, humilhado, ele foi embora da piscina. Olhei para aquela cena e notei que grande parte das pessoas presentes a acompanhava sem entender. Tentei pedir desculpas, mas estas só foram aceitas dias depois. Não havia nenhuma razão consciente para minha violência, não creio ter tido um momento edipiano, nem ter protagonizado algum tipo de vingança contra os gritos que às vezes ele desferia contra a minha mãe e que desde criança feriam meus ouvidos. Devo ter medido mal minha força ou quis me exibir para o André, com muitos anos de atraso. Ou me descontrolei e apliquei um golpe na pessoa e local errados. Era o Luizão involuntariamente em plena atividade.
Algumas atitudes violentas que tomei podem ter ecoado aquele tapa da praça. Em outros casos, me pergunto se foram sinais do transtorno bipolar que desenvolvi com o tempo. Há quem diga que devem ter sido simples reações de raiva, comuns a qualquer ser humano. No entanto, quem é bipolar sente exatamente quando a situação foge do controle, e sabe do arrependimento e culpa que tomam conta da nossa cabeça, querendo apagar por completo o que acabou de acontecer. Os dois momentos, de raiva e culpa, são igualmente fortes e incontroláveis.“
Absurdos e mistérios que tecem nossos destinos
“... Uma passagem extensa do romance interrompido se passava na Cinecittà. O texto novamente pecava por excesso de histórias, e por uma falsa erudição, típica de editor. Não tinha o encadeamento adequado, e os personagens se ressentiam da falta de complexidade. Com a ânsia de encaixar todas as minhas leituras no enredo, eu me esquecia de que são os detalhes que tornam plausível uma narrativa. Uma história lateral à trama retratava um cinegrafista alemão que trabalhara com Leni Riefenstahl, estivera presente durante a ocupação e saque dos estúdios romanos pelos nazistas, e lá se refugiara quando os nazistas abandonaram o local, consciente de que as coisas já começavam desandar para o seu país.
Enquanto lia tudo sobre Leni Riefenstahl e escrevia essa parte, tive notícia de que um autor boliviano publicara um romance cujo protagonista havia trabalhado com Leni. Já em dúvida sobre a qualidade do que escrevia, e mesmo sem ler o livro em questão, a coincidência foi suficiente para que eu caísse em mim, notando mais uma vez a falta de originalidade que me pautava como escritor de livros de maior fôlego.
Também durante a escrita, procurei uma amiga do meu pai, que hoje vive no Lar dos Velhos e a quem costumo visitar. Na ocasião ela ainda não havia se mudado para o asilo e me recebeu em seu belo apartamento em Higienópolis. Serviu um chá em porcelana caprichada, mostrou fotos das netas e me contou detalhes das experiências que compartilhara com André. Ela chegou à Itália depois de ter sobrevivido ao campo de extermínio de Auschwitz. Foi enviada com o marido a Óstia de Roma, onde os colocaram na casa em que meu pai estava. Todos ali aguardavam um visto de emigração para Israel. Entre tantos outros detalhes da vida em Óstia de Roma e na Cinecittà, Magda contou que presenciou a atuação de meu pai como extra num filme, nas ruas de Roma. Falou que André teve que vestir, para a filmagem, um uniforme nazista. Emocionada, mostrou-me os números tatuados em seu braço e disse: “Luizinho” — ela até hoje me chama pelo apelido —, “eu sobrevivi a Auschwitz, mas tenho que confessar, seu pai estava lindo naquele uniforme”.
Foi Magda quem me contou das castanhas compradas depois das filmagens e divididas com todos os refugiados da casa. E mencionou atitudes do meu pai que, para minha surpresa, o revelavam como verdadeiro líder do pessoal acampado naquela mansão sem teto. Magda e André mudaram-se de Óstia de Roma para a Cinecittà quando desistiram de ir para Israel e aceitaram emigrar para qualquer outro lugar. Ao decidirem que topariam vir para a América, do Norte ou do Sul, foram transferidos para os estúdios. De lá saíam diariamente às ruas de Roma, onde tentavam vender parte da comida e da roupa que lhes doavam, para guardar algum dinheiro e pagar a futura viagem. No fim, embarcaram no mesmo navio para o Brasil.“