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O castiçal florentino

Autor

Luiz Antonio Aguiar

Editora

Rocco

Tradução

A difícil arte de aceitar a graça

“... Vou lhe contar o que aconteceu, mas não para insinuar que de algum modo a culpa é sua. Não quero em absoluto dar a entender que você é responsável pela vida que levo agora, ou pelos aspectos mais incômodos dessa vida. Quanto a isso você pode se tranquilizar; não culpo ninguém por nada, aliás nem acho que seja uma questão de culpa. Pois de certo modo minha existência agora, bem pesados os prós e os contras, está longe de ser insuportável, talvez seja até melhor do que antes; às vezes chego a pensar que minha atual situação é, sob certos aspectos, invejável. Afinal, sou dono do meu nariz; depois que chego do trabalho, pontualmente às sete e meia todos os dias, de segunda a sexta, faço o que me dá na telha, não dou satisfação a ninguém. Se resolvo sair, saio; se acho melhor ficar em casa lendo um livro, fico em casa lendo um livro. Ou melhor: quando me dá vontade de sair, não saio; quando desejo ficar em casa, saio. É isso que as pessoas chamam de liberdade, não é? Se não é, devia ser.

Certo, não posso dizer que eu seja uma pessoa feliz. Bem, ninguém disse que a liberdade era garantia de felicidade, não é? E mesmo que dissesse, eu é que não ia acreditar. Mas a questão não é essa, e sim outra: Por que é que a gente tem que ser feliz? Onde que está escrito que a gente tem essa obrigação? Deve haver alguma cláusula na Declaração Universal dos Direitos do Homem que garanta ao cidadão o sagrado direito de ser tão infeliz quanto quiser, de infernizar a sua própria vida quanto quiser — infernizar a vida alheia são outros quinhentos, sobre isso não digo nada; falo apenas sobre o direito de optar pela infelicidade, pelo prazer maligno de negar a si próprio todas as coisas pelas quais as pessoas se estapeiam pela vida e pelo mundo afora, e procurar exatamente aquilo que todo mundo evita. Mas isso, repito, não tem nada a ver com você, nada a ver com nada que você tenha feito ou deixado de fazer; é uma questão minha, exclusivamente minha.



Tempo desperdiçado que se soma à eternidade



“... Pois bem, eu tinha cruzado o maciço da Tijuca, trafegando em alta velocidade alguns metros abaixo da superfície da Terra, carregando a tal encomenda, e agora aquela criatura, entre uma e outra baforada, me dizia que não podia aceitá-la. Como você há de entender, essas palavras dela tinham para mim um sentido muito sério. Era como se ela me dissesse que tudo que eu tinha feito desde a véspera, desde o momento em que aceitei segurar a sacola da mulher no metrô até aquele exato instante, tudo aquilo tinha sido completamente inútil, um desperdício de tempo, de energia, de vida, que afinal de contas ninguém é imortal — o tempo que a gente passa em filas erradas, assistindo a filmes ruins, ajudando pessoas que depois sacaneiam a gente, enfim, essas coisas todas representam um desperdício de vida, em última análise, é ou não é? Já lhe ocorreu que, se fossem colocados lado a lado todos esses momentos, todas essas horas, o tempo gasto à espera do eletricista que acabou não vindo, ou tentando se livrar de um operador de telemarketing, ou esperando um elevador que na verdade estava quebrado, ou conversando com a pessoa fascinante que acaba não tendo o menor interesse pela gente, ou mesmo convivendo anos com… mas chega de exemplos: que se todas essas extensões de tempo na vida de uma pessoa de, digamos, cinquenta e sete anos de idade, fossem alinhadas, teríamos talvez cinco ou seis anos corridos de absoluto desperdício, tempo mais que suficiente para que Goethe escrevesse uma dúzia de obras imortais, ou que Napoleão despachasse dez mil pessoas desta para melhor? Já pensou nisso? Pois se não pensou, pense.

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Luiz Antonio Aguiar

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