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O filho eterno
Autor
Cristovão Tezza
Editora
Record
Tradução
O escritor, como uma expressão ampliada do filho autista
“... Nos últimos vinte anos o pai foi acompanhando sempre que pôde o avanço da tecnologia para estimular o filho, começando pela televisão, desde criança. E, sub-repticiamente, a tentativa de acompanhar o menino exerceu também uma influência inversa, a do filho sobre ele, também um pai com permanente dificuldade para a vida adulta madura, seja isso o que for, ele pensa, sorrindo – e talvez a filha, que não tem nada com isso, sofra as consequências de ter um pai que se recusa a crescer. Anos depois, ele imagina, tudo pode ser desenhado claramente, com uma boa teoria na mão, mas na vida real não temos tempo para pensar em nada. O tempo presente é um tatear no escuro, o pai se desculpa.
Mas há critérios objetivos, ele imagina – é preciso manter a criança permanentemente exposta à linguagem. Televisão. Um estalo na cabeça: é simples. Alguém que viu uma televisão em preto-e-branco pela primeira vez aos 8 anos de idade e que passou toda a sua formação de juventude detestando aquela caixa, detestando novelas, detestando noticiários, e que acreditou piamente ser a Rede Globo a mãe de todos os males do país, figura tenebrosa a fazer dos então noventa milhões de habitantes uma massa inerte de robôs idiotas repetindo tudo que viam e ouviam, agora enfim compraria uma televisão. Foi uma entrega prazerosa, total, completa, sob o álibi do filho que precisava de estímulos. Mergulhou no mundo fascinante da imagem descartável com a volúpia de um devasso. Televisão, primeiro; em seguida, um videocassete, dos primeiros modelos, um tijolaço comprado ainda num consórcio de 36 meses – para que as crianças vejam desenhos animados estimulantes e repetidos à exaustão, desculpava-se ele. As crianças querem ver sempre o mesmo desenho animado, querem ouvir sempre a mesma história, milhares de vezes, ele se espanta. A menina sabe de cor todas as histórias, que repete para o irmão, a um tempo presente e ausente, e teatraliza situações familiares em que ela é a mãe e ele o filho. Como todas as crianças do mundo em situações semelhantes, a imitação é a força motora de tudo que se cria, o pai supõe, sempre inseguro no seu trabalho de escritor. Mas, ele pensa, felizmente vive distante mil anos-luz da vida literária nacional, refugiado no silêncio denso da província, o que o preserva, também ele autista, do que imagina ser uma triste, angustiante e agressiva mediocridade, contra a qual ele sente que precisa controlar o sopro de um discreto ressentimento, motor de todos os que fazem arte, isto é, que fazem aquilo que, por princípio, não interessa a ninguém. Bem, pelo menos esta arte que eu faço, a literatura, ele concede, enquanto vê músicos na televisão que interessam profundamente, o tempo todo, a milhões de pessoas.
Passa alguns anos – ele se culpa, ainda no Templo das Sete Confissões – mais preocupado consigo mesmo do que com os filhos, todo aquele tempo de escrita e reescrita de livros que não existem, que não se publicam, que, publicados, não são lidos, e que enfim não vendem nada, numa inexistência poderosa e asfixiante. Os livros são diferentes uns dos outros, mas ele parece não aprender nada com a experiência, movendo-se em círculos, ele mesmo uma expressão ampliada do seu filho, envolto sempre no próprio labirinto. É um projeto artístico, ou um projeto terapêutico? – ele se pergunta às vezes, caneta à mão, diante da página em branco. A teimosia: é um homem teimoso. Disfarça o orgulho descomunal de suas qualidades imaginárias com um jeito bonachão de quem parece ser igual a todo mundo. Lentamente começa a se ver como expressão passiva de um projeto existencial que está em alguma outra parte, desenhado por alguém que não ele. Talvez eu esteja a serviço de alguma coisa falsa, um secreto diamante de vidro de que sou vítima. O que não seria – ele admite, assustado – de todo mau. Escrevendo, pode descobrir alguma coisa, mas sem confundir – isso o escritor percebeu logo – a vida e a escrita, entidades diferentes que devem manter uma relação respeitosa e não muito íntima. Só sou interessante se me transformo em escrita, o que me destrói sem deixar rastro, ele imagina, sorrindo, antevendo algum crime perfeito. Ninguém descobrirá nada, ele enfim sonha, oculto em algum refúgio da infância. “