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O sol se põe em São Paulo

Autor

Bernardo Carvalho

Editora

Companhia das Letras

Tradução

Paulicéia publicitária

“... A Liberdade é um desses bairros de São Paulo que, embora em menor escala
do que nas regiões mais ricas, e por isso mesmo de um modo às vezes até
simpático, ressalta no mau gosto da sua rala fantasia arquitetônica o que a cidade
tem de mais pobre e de paradoxalmente mais autêntico: a vontade de passar pelo
que não é. O pôr-do-sol em São Paulo é reputado como um dos mais
espetaculares, por causa da poluição, eu disse ao homem com lábio leporino. Só

fui entender São Paulo era que uma cidade de monumentos – mas onde os
monumentos não existiam; eram por assim dizer invisíveis – no dia em que
sonhei que dirigia um carro, de monumento em monumento, pelas ruas vazias de
uma tarde de domingo, no inverno, uma estação que aqui também não existe.
Eram monumentos que eu nunca tinha visto antes, e que só existiam no meu
sonho, em lugares onde na realidade se erguem os prédios mais decrépitos ou as
fantasias arquitetônicas mais tolas e não menos pavorosas. São Paulo não se
enxerga – ou não chamaria periferia de periferia. Não é só eufemismo. Chamam-
se excluídos aos oitenta por cento da população. Não é à toa que é uma cidade de
publicitários. Em São Paulo, publicidade é literatura, expliquei ao homem com
lábio leporino, em inglês, sem deixar claro se fazia uma crítica ou me justificava.
É uma cidade que quer estar em outro lugar e em outro tempo. E essa vontade só
a faz ser cada vez mais o que é e o que não quer ser. As mansões mouriscas
ecléticas do começo do século XX (a maioria derrubada) e os prédios
mediterrâneos, neoclássicos, florentinos e normandos construídos há poucas
décadas revelam o atraso do presente. Cada imigrante, achando que
transplantava o estilo da sua terra e dos antepassados, acabou contribuindo para
a caricatura local. Em Nova York, também houve um momento de exaltação
capitalista, antes da quebra da bolsa, em 1929, quando o poder do novo dinheiro
ergueu prédios renascentistas, na tentativa de transformar a cidade numa nova
Florença. Quase cem anos depois, o poder do novo dinheiro ergueu em São Paulo
– uma cidade sitiada pela miséria e pelo crime, dos quais esse mesmo poder se
alimenta embora tente em vão excluí-los – prédios de estuque, que foram
batizados de "estilo florentino", na tentativa de imitar a antiga Nova York. Não é
só que esteja tudo fora do lugar. Está tudo fora do tempo também. Na Liberdade,
nem mesmo um bêbado, ao sair trôpego de um restaurante, acreditando que é
escritor, pode achar que está numa viela tranquila dos subúrbios de Tóquio e não
numa megalópole violenta do Terceiro Mundo. E, no entanto, é disso que as ruas
de São Paulo tentam convencer quem passa por elas: que está em outro lugar,
num esforço inútil de aliviar a tensão e o incômodo de estar aqui, o mal-estar de
viver no presente e de ser o que é. “

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