Quando deixamos de entender o mundo
Autor
Benjamín Labatut
Editora
Todavia
Tradução
Paloma Vidal
A poesia de um santo bebedor, para tentar entender o mundo
“... Suando dos pés à cabeça, passava o dia memorizando Divã ocidento-oriental, um livro de poemas de Goethe que um visitante anterior esquecera no quarto. Lia os poemas em voz alta, várias vezes. Alguns dos versos conseguiam escapar ao confinamento do seu quarto e se amplificavam nos corredores vazios do hotel, desconcertando os outros hóspedes, que os ouviam como se fossem desvarios de um fantasma. Goethe os escrevera em 1819, inspirado pelo místico sufi Khwāja Shams-ud-Dīn Muḥammad Ḥāfez.-e Shīrāzī, conhecido simplesmente como Hafez. O gênio alemão leu o grande poeta persa do século XIV em uma tradução ruim publicada na Alemanha e chegou a acreditar que tinha recebido o livro por mandato divino. Identificou-se tanto com ele que sua voz mudou completamente, fundindo-se com a do homem que cantara as glórias de Deus e do vinho, quatrocentos anos antes. Hafez tinha sido um santo bebedor, tão místico quanto hedonista. Dedicou-se à oração, à poesia e ao álcool, e aos sessenta anos traçou um círculo na areia do deserto, sentou-se no meio e jurou que não se levantaria até tocar a mente de Alá, o Deus único e todo-poderoso. Passou quarenta dias em silêncio, atormentado pelo céu e pelo vento, sem obter resultados, mas, ao romper seu longo jejum com uma taça de vinho dada pelo homem que o encontrou a um passo da morte, sentiu o despertar de uma segunda consciência que se impôs à sua e ditou a ele mais de quinhentos poemas. Goethe também contou com ajuda para escrever seu Divã, embora não tenha se inspirado na divindade, mas na esposa de um de seus amigos, Marianne von Willemer, tão fanática por Hafez quanto ele. Escreveram o livro a duas mãos, trabalhando os rascunhos em longas cartas cheias de erotismo, nas quais Goethe se imagina mordendo os bicos de seus seios e penetrando-a com os dedos, enquanto ela sonha em sodomizá-lo, embora só tenham se visto uma vez e não haja evidência de que tenham conseguido cumprir suas fantasias. Marianne compôs os cantos ao vento do Leste na voz de Zuleica, a amante de Hatem, mas sua coautoria foi um segredo que só confessou na noite antes de morrer, recitando os mesmos versos que Heisenberg lia sacudido pela febre: Onde está a cor que pode cingir o céu?/ A névoa cinza me deixa cega/ quanto mais olho menos vejo.
Mesmo doente, Heisenberg insistia em trabalhar nas suas matrizes: enquanto Frau Rosenthal aplicava nele compressas frias para baixar a temperatura e tentava convencê-lo a chamar um médico, ele lhe falava de osciladores, linhas espectrais e elétrons amarrados harmoniosamente, convencido de que só precisava aguentar alguns dias para que seu corpo vencesse a doença e sua mente encontrasse a saída do labirinto onde tinha se fechado. Embora mal pudesse virar as páginas, continuava lendo os versos de Goethe, e cada um deles parecia uma flecha dirigida contra si mesmo: Só estimo aqueles que anelam a morte/ em chamas o amor me abraçou/ em cinzas toda imagem de minha mente. Quando conseguia dormir, Heisenberg sonhava com dervixes que rodavam no centro de seu quarto. Hafez os perseguia de quatro, bêbado e nu, latindo para eles como um cachorro. Puxava seu turbante, seu copo de vinho e depois a jarra vazia para tentar tirá-los da órbita. Não conseguindo quebrar seu transe, mijava neles um por um, formando um padrão de manchas amarelas no tecido de suas túnicas no qual Heisenberg acreditava reconhecer o segredo de suas matrizes. Ele esticava as mãos para pegá-lo, mas as manchas se transformavam em uma longa fileira de números que dançava ao seu redor, envolvendo seu pescoço em um círculo cada vez mais estreito, até que ele mal conseguia respirar. Esses pesadelos eram um descanso bem-vindo para seus sonhos eróticos, que só se tornavam mais intensos à medida que ele ia perdendo a força e o faziam manchar os lençóis como um adolescente. “