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Queda livre – ensaios de risco

Autor

Otavio Frias Filho

Editora

Companhia das Letras

Tradução

A morte do autor: a verossimilhança no texto jornalístico-literário

“ ... O suicídio do autor seria coroamento espetacular deste livro, capaz de dotá-lo da máxima coerência e de expandir seu espírito de investigação participativa para além de todos os limites. Ao mesmo tempo, ajudaria nas vendas. Quando informava qual seria o tema do último capítulo, quase sempre me perguntavam se eu pretendia me suicidar para escrevê-lo. Às vezes fantasiava se alguém na editora não estaria desconfiado de que, tendo entregue os últimos originais, eu acrescentaria o verdadeiro ponto final fora de suas páginas. Solução audaciosa, mas não propriamente inédita – parece que já não é possível fazer nada pela primeira vez. Em 1770, o poeta inglês Thomas Chatterton matou-se no quarto de uma hospedaria em Londres, por ingestão de arsênico, a fim de chamar a atenção para a própria obra literária.

Quem ainda não imaginou a própria morte, quem nunca especulou sobre o próprio enterro? Quando essas visões me vinham à mente, eu costumava prolongá-las para ver aonde iam dar. Pensava nas pessoas se dispersando após a cerimônia, talvez para cumprir o ritual de quase todas as culturas que manda comer após sepultar alguém, numa celebração antropofágica destinada a reafirmar os direitos da vida sobre a morte. Fantasiava depois alguns retardatários conversando animadamente no final de uma missa – e a partir desse ponto minha memória entre os vivos começaria desvanecer aos poucos, episódios seriam descritos de forma deturpada pelo esquecimento, meu nome seria cada vez menos pronunciado, meu aniversário lembrado por um número minguante de pessoas. Quanto tempo demora para que todo vestígio deixado por alguém desapareça da face da Terra? Há pouco tempo recebi de uma tia com quem sempre tive afinidades um pacote de antigas fotos de família. Dentro havia chapas que recuaram pelas gerações até por volta de 1880. Olhei espantado para aqueles ancestrais irreconhecíveis que faziam poses imponentes, suas fisionomias pouco mais do que um clarão difuso, o fantasma de um instante perdido na eternidade do passado. Mais uma geração e todos seriam completos desconhecidos.Com ajuda de anotações nas fotos, identifiquei alguns antepassados em linha direta. Mesmo o vínculo biológico era tênue e mais cedo ou mais tarde viria a desaparecer: na melhor das hipóteses restava apenas um oitavo do legado genético de cada um deles em mim.

Depois que saltei de paraquedas e este livro começou a tomar forma, eram tantas as incursões que eu gostaria de fazer e relatar que estabeleci um conjunto de critérios. Foi na época do Dogma, a escola de cineastas nórdicos que se impôs uma série de renúncias tecnologias como estratégia para realizar um cinema mais autêntico. Criei por imitação o meu próprio "dogma". Cada episódio do livro deveria narrar uma vivência capaz de atrair qualquer pessoa, não fosse pelos riscos psicológicos envolvidos. Essa vivência deveria estar radicada no corpo. Cada reportagem dissecado ao mesmo tempo uma comunidade organizada como seita, com crenças, hierarquia e linguagem próprias. Os textos seriam redigidos na primeira pessoa e não viriam acompanhados de fotos minhas. Jamais repetiria nenhuma das "experiências". E assim por diante. Da mesma forma que os cineastas do Dogma, violei pelo menos uma dessas regras em todos os capítulos. Com o tempo, percebi que eu vinha associando cada ensaio a um pecado capital, atraído, talvez, pela coincidência numérica (a saber, de acordo com a sequência na qual aparecem os capítulos: ira, preguiça, avareza, orgulho, gula, luxúria e inveja). Uma pessoa que leu parte dos originais comentou que parecia um exercício de expiação religiosa escrito por um ateu. Eu preferia pensar que minha descida até os círculos do inferno pessoa – meus "trabalhos de Hércules", como os chamava de brincadeira, eram uma paródia de autoanálise.

A cena de suicídio que fui obrigado a presenciar talvez tenha me curado para sempre – quem sabe não seja excessivo julgar que o sacrifício daquela pessoa inadvertidamente me salvou. Se persistia alguma inclinação autodestrutiva, oculta sob o projeto do livro, sua realização parece tê-la dissipado. Havia ampliado minhas faculdades para sentir e compreender, desafiado meus pesadelos inconfessáveis e me achava agora um pouco mais à vontade dentro de mim mesmo. Pensava na divisa de Emerson, I must be myself. Ainda tomado pelos mesmos temores de sempre, mas de coração mais leve, sem atribuir importância tão peremptória seja à vida, seja à morte, eu me voltava para os dias que estão por vir com a confiança de que poderia, com alguma sorte, se quisesse, torná-los melhores para mim e para os outros.”

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Design e mentoria por Victor Luna

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