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Serotonina

Autor

Michel Houellebecq

Editora

Alfaguara

Tradução

Ari Roitman, Paulina Wacht

A modesta contribuição para destruir o planeta

“ ... Tínhamos quartos separados havia alguns meses, eu tinha deixado a "suíte principal para ela (uma suíte principal é feito um quarto, só que tem um cômodo para se vestir e um banheiro, explico isso pensando nos meus leitores das camadas populares) e fiquei com o "quarto de visitas", e utilizava o banheiro contiguo, não precisava de banheira: uma escovada nos dentes, uma chuveirada rápida e assunto encerrado.

Nossa relação estava em estágio terminal, nada mais podia salvá-la, e isso aliás não era desejável, mas preciso reconhecer que tínhamos o que se costuma chamar de uma "vista maravilhosa. Tanto a sala como a suíte davam para o Sena, e para além do Décimo Sexto Arrondissement viam-se o bosque de Boulogne, o parque de Saint-Cloud etc.; quando o tempo estava bom, até o palácio de Versalhes. Meu quarto dava diretamente para o hotel Novotel, situado a menos de duzentos metros, e mais à frente se divisava a maior parte de Paris, mas a vista não me interessa, eu deixava as cortinas duplas fechadas o tempo todo, não detestava apenas o bairro de Beaugrenelle, detestava Paris toda, sentia repulsa dessa cidade infestada de burgueses ecorresponsáveis, talvez eu também fosse um burguês, mas não era ecorresponsável, andava num 4x4 a diesel – pode ser que eu não tivesse feito grandes coisas na vida, mas pelo menos contribuiria para destruir o planeta – e sabotava sistematicamente o programa de coleta seletiva de lixo implantado pelo síndico jogando as garrafas vazias na lixeira destinada aos papéis e embalagens e os restos de comida no contêiner para vidro. Eu me orgulhava um pouco da minha falta de civismo, mas assim também me vingava mesquinhamente do preço indecente do aluguel e do condomínio; depois de pagar o aluguel e o condomínio e entregar a Yuzu a quantia mensal que ela me pedira para "ajudar nas despesas domésticas" (que basicamente consistiam em encomendar sushi), eu tinha gastado exatamente noventa por cento do meu salário, ou seja, minha vida de adulto se reduzia a torrar a herança do meu pai, e meu pai não merecia isso, decididamente era hora de acabar com essa besteira.”

As diferenças de idade, raça e língua na funcionalidade do amor

“ ... Quando conheci Claire, eu estava com vinte e sete anos, minha época de estudante havia ficado para trás e já tinha conhecido um monte de garotas, a maioria estrangeiras. É bom lembrar que nessa época não existia a bolsa Erasmus, que mais tarde iria facilitar tanto as relações sexuais entre estudantes europeus, e que um dos únicos lugares em que era possível ficar com estudantes estrangeiras era a Cidade Universitária Internacional do Boulevard Jourdan, onde milagrosamente o curso de Agricultura dispunha de um pavilhão onde todos os dias havia shows e festas. Assim conheci carnalmente garotas de diversos países e me convenci de que o amor só pode se desenvolver a partir de alguma diferença, de que o semelhante nunca se apaixona pelo semelhante, e de que na prática muitas diferenças podem funcionar: uma diferença extrema de idade, como se sabe, pode gerar paixões de uma violência inexplicável; a diferença racial sempre tem sua eficácia; e não podemos desdenhar a simples diferença nacional e linguística. Não é bom que os amantes falem a mesma língua, não é bom que possam se entender de verdade, que consigam se comunicar verbalmente, porque a vocação da palavra não é criar amor, mas sim divisão e ódio, a palavra separa à medida que é formulada, enquanto um balbucio amoroso sem forma, semilinguístico, falar com sua mulher ou com seu homem como se fala com seu cachorro, cria as condições de um amor incondicional e duradouro. As coisas até poderiam correr bem se pudéssemos nos limitar a questões imediatas e concretas – cadê as chaves da garagem?, a que horas vem o eletricista? –, mas passando daí começa o reino da confusão, do desamor e do divórcio.”

Quando a alta cultura se rende aos amores ligeiros

“ ... Fazia muito tempo que eu havia planejado ler A montanha mágica de Thomas Mann, intuía que era um livro fúnebre, mas afinal de contas bastante adequado à minha situação, sem dúvida era o momento certo. Então mergulhei na leitura, a princípio com admiração, depois com uma reserva crescente. Embora sua extensão e suas ambições fossem muito maiores, o sentido último da obra era no fundo idêntico ao de Morte em Veneza. Tal como aquele velho imbecil do Goethe (o humanista alemão de tendência mediterrânea, um dos velhos gagás mais sinistros da literatura mundial), tal como seu herói, Aschenbach (só que muito mais simpático), Thomas Mann, o próprio Thomas Mann, e isso é extremamente grave, não foi capaz de escapar à fascinação da juventude e da beleza, que afinal colocou acima de tudo, acima de todas as qualidades intelectuais e morais, e às quais, afinal de contas, ele também, sem o menor comedimento, se entregou abjetamente. Assim, toda a cultura universal não servia para coisa nenhuma, toda a cultura universal não trazia qualquer vantagem ou benefício moral, porque na mesma época, exatamente na mesma época, Marcel Proust, no final de O tempo recuperado, concluía com notável franqueza que não só as relações mundanas, mas também as de amizade, não tinham nada de substancial a oferecer, eram pura e simples perda de tempo, e que o escritor, ao contrário do que todos acham, não precisava em absoluto de conversas intelectuais, mas de "amores ligeiros com moças em flor". Neste ponto da argumentação, permito-me substituir "moças em flor" por “jovens bocetas úmidas"; isso vai contribuir, creio, para clarificar o debate sem detrimento de sua poesia (o que há de mais bonito, mais poético, que uma boceta começando a umedecer? Peço que pensem com seriedade antes de me responder. Uma pica iniciando sua ascensão vertical? Isso pode ser defendido. Depende, como tantas outras coisas neste mundo, do ponto de vista sexual que se adore).

Voltando ao meu tema, por mais que Marcel Proust e Thomas Mann dispusessem de toda a cultura do mundo, por mais que estivessem à frente (no impressionante começo do século XX, que sintetizava oito séculos e até um pouco mais de cultura europeia) de todo o saber e de toda a inteligência do mundo, por mais que representassem, cada qual por sua vez, o topo da civilização francesa e da alemã, ou seja, das civilizações mais brilhantes, mais profundas e refinadas da época, não estavam menos à mercê, e dispostos a prosternar-se, diante de qualquer jovem boceta úmida ou de qualquer pica corajosamente erguida – segundo suas preferências pessoais, Thomas Mann nesse sentido não conseguia se decidir, e Proust no fundo tampouco é muito claro. Assim, o final de A montanha mágica ainda era mais triste do que parecia em sua primeira leitura; não só significava – devido ao início em 1914 de uma guerra tão absurda quanto mortífera entre as duas mais altas civilizações da época — o fracasso de qualquer ideia de cultura europeia, como também significava, com a vitória no final da atração animalesca, o fim definitivo de qualquer civilização, de qualquer cultura. Uma bocetinha poderia ter deixado Thomas Mann de quatro; Rihanna faria Marcel Proust pirar, esses dois autores, pontos culminantes de suas respectivas literaturas, não eram, para dizer de outra maneira, homens cândidos, e teríamos que remontar muito mais atrás, ao começo do século XIX, ao tempo do Romantismo nascente, para respirar um ar mais saudável e puro.”

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