Sonho interrompido por guilhotina

“... A precisa descrição do clímax gozoso que é o processo de escrita ganhando força e colocando-se imperiosamente a caminho (depois de períodos de reflexão e de idealização que podem beirar a eternidade) pode muito ser útil para se compreender o posterior abandono da literatura por parte de Nassar e também por outros de seus iguais, legionários desertores da criação. Experimentar os orgasmos múltiplos da redação sem tapa nem canga e depois, com passar do tempo e a perda da iniludível “inocência” necessária à manutenção de uma carreira literária, conformar-se à repetição e aos esforços das inevitáveis encomendas e solicitações típicas da profissionalização pelas quais escritores passam conforme seus livros saem e tão logo a política do prestígio se delineia, e assim ver-se diante da substituição das intensas etapas de transformação alquímica de desejo em ficção pelos desertos burocráticos habitados pela obrigação (termo também traduzível por “trabalho”) significa a mais excruciante das mortes em vida.

Por meio desse raciocínio é possível concluir que há duas espécies de escritores que abandonam a literatura: aqueles que de maneira abnegada se recusam a escrever e os outros que param de se dedicar àquela literatura ditada por suas mais altas ambições, porém mesmo assim permanecem a preencher livros e mais livros, páginas seguidas de páginas esvaziadas de sentido para o seu próprio e individual espírito, voltadas apenas às normas do mercado e ao medíocre senso comum do interesse do leitor contemporâneo, ávido pelo insípido refilado em octavos e temente a tudo o que não se assemelhe a folhetins sensaborões. E pela certeza de que o primeiro tipo de escritor é muitíssimo raro se comparado ao batalhão de representantes da segunda categoria é que agora permito a Raduan retornar a uma daquelas manhãs de 1969 e o devolvo ao volante de seu fusquinha.“

‍