menu

Veja na Amazon

Tudo pode ser roubado

Autor

Giovana Madalosso

Editora

Todavia

Tradução

Um beijo com gosto de radioatividade e efeito de acidente nuclear

“ ... Ela está bonita assim, desarmada e com os olhos caídos. Vamos chegando cada vez mais perto e, quando percebo, minha língua está dentro de sua boca. Gosto do que sinto, o hálito quente, o movimento sem pressa. Mas também tem alguma coisa de estranho, um gosto meio metálico na saliva dela. Quando acabamos, como se adivinhasse o que estou pensando, ela diz: o meu beijo é radioativo. Olho surpresa para ela, que continua: tô com câncer, fazendo radioterapia. Mas fica tranquila que a radioatividade que tenho no meu corpo é irrisória. Depois ela se levanta e, com o baseado riste, continua: portanto, tire seu cavalo da chuva que hoje você não vai brilhar verde como o césio, nem se deformar como as plantas de Fukushima. Acho triste o que ela diz. Lembro de uma matéria que vi numa revista contando como as margaridas de Fukushima ficaram depois do acidente radioativo, nascendo com os miolos grudados uns aos outros, flores sufocadas como irmãs siamesas. E então penso no seio ausente da Camila como pensei antes, só que agora imagino nesse seio uma flor disforme.

É por isso que comecei a fumar maconha, ela diz, pra aliviar as dores e os formigamentos que sinto. Em que estágio tá teu câncer?, eu pergunto. Metástase, ela me diz. E depois, como quem conta o que vai fazer nas próximas férias, completa: logo mais eu vou morrer. Tenho vontade de dizer algum coisa, mas acho melhor ficar quieta a falar merda. Ela senta na cadeira pendente. Uma esfera transparente de acrílico cortada ao meio. A fumaça sai de sua boca e se espalha pela meia esfera, uma fumaça leitosa que, tenho a impressão, ela gostaria de absorver por inteiro. De repente, ela começa a rir, a quase gargalhar. Dediquei a minha vida toda pra construir prédios, você acredita? Meu ex-marido me deu um pé na bunda porque eu passava o final de semana visitando obras, desenhando croquis, folheando revistas de arquitetura. E olha que o pior ele nem sabe, eu às vezes transava pensando em cobogós, em pilotis. Depois que ele gozava, eu virava pro lado e rabiscava o que tinha pensado num caderninho. Deu certo, gozei menos do que deveria, mas fiz obras relevantes. Daqui a cinquenta anos, meu nome vai continuar por aí, as pessoas vão falar: olha o prédio da Camila Freire. Mas a que custo. Quanta abdicação. Quanta pobreza afetiva, ela diz, e empurra o pé contra o sofá, movimentando o balanço. E o pior nem é isso, ela continua. O pior é que ninguém prepara a gente pra essa merda. Você tá lá trabalhando, postando fotinho nas redes sociais, segurando teu dry martini numa festa e, de repente, aparece um cara de jaleco branco e diz: querida, acabou pra você. E daí fodeu. Porque a gente vive numa sociedade que prepara a gente pra distinguir um vinho frutado de um amadeirado, mas não prepara a gente pra morrer. Ninguém fala sobre isso. É a coisa mais arrebatadora que existe, e ninguém discute o assunto. Como se a única forma de permanecer vivo e relativamente satisfeito seja fazendo de conta que a morte não existe. E daí você, que foi subitamente agendada com a dita-cuja, sai enlouquecida em busca de alguma religião, de alguém que saiba um pouco sobre esse negócio. Mas, além de ninguém ter muita certeza de nada, nenhum ensinamento é absorvido na hora, nenhuma batina ou terreiro oferece o curso Prepare-se para a Morte em Apenas um Mês, ela diz e impulsiona de novo o balanço, de um jeito que me faz pensar num barco zarpando do cais. Pra você ter uma ideia, ela continua, logo que eu soube do diagnóstico, me senti tão desorientada que, almoçando como pessoal do escritório num restaurante chinês, chamei o garçom num canto e perguntei se ele não podia me vender um saco de biscoitos da sorte. Você acredita nisso? Eu, aquela pessoa tão estudada, mestrado na Escola Paris La Seine, sentei em casa à noite com uma garrafa de vinho e abri todos aqueles biscoitos em busca de uma frase que me trouxesse algum alento. E falando em vinho..., ela diz, e sai do balanço, voltando logo depois com uma garrafa e duas taças na mão. Esqueceu que não bebo?, eu digo. É mesmo, tô muito chapada, ela responde e, ignorando as taças, gruda a boca no gargalo.”

Mais de

Giovana Madalosso

Autor

Giovana Madalosso

Editora

Todavia

Tradução

citoliteratos

Idealizado por Afonso Machado - Todos os direitos reservados

Design e mentoria por Victor Luna

citoliteratos

Idealizado por Afonso Machado - Todos os direitos reservados

Design e mentoria por Victor Luna

citoliteratos

Idealizado por Afonso Machado - Todos os direitos reservados

Design e mentoria por Victor Luna