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Uma outra vida - Contos

Autor

John Updike

Editora

Companhia das Letras

Tradução

José Antonio Arantes

Indefeso, escancarando suas mazelas, diante da sensualidade feminina de um olhar

(Conto: Tristão e Isolda)

“ ... Em silêncio, com uma voz interior de súplica que clamava, ele lhe garantiu que doravante não teria medo, não teria. Não falou porque receava deslocar o sugador de saliva que murmurava, que tinha a forma de um ponto de interrogação. Às vezes, seus olhos perambulantes batiam nos dela, e em seguida se desviavam, desarmados pelo esplendor deles, pela – como dizem os desconstrucionistas – presença deles. Seu olhar não ousava se deter nem mesmo o suficiente para registrar a cor daqueles olhos; ele recolhia apenas a pós-imagem espiritual e estelar do gel vivificante deles, ao mesmo tempo cristalino e aquoso, atrás da barreira dupla dos óculos e dos óculos de segurança, acima da máscara de papel em forma de escudo que lhe ocultava a boca, o queixo e as narinas. Tanta coisa dela estava encerrada, protegida. Apenas o fundamental emergia, como os apêndices emplumados de um ganso bravo – o toque e o olhar impassível e inexpressivo.

— Agora vire um pouco para lá. Não tanto assim. Perfeito.

Perfeito. Antes fosse. Ela mais do que ninguém sabia quanto ele era imperfeito. O quanto era podre, em uma palavra. Afundando-se fora do alcance da vergonha, descontraiu-se enquanto ela explorava e sacrificava os molares inferiores, naufrágios pútridos mal salvados da ruína de seus anos de negligente consumo de coisas doces. Sonhos, amendoim japonês, barras de chocolate, bastões de alcaçuz, passas de uva revestidas de chocolate... Mea culpa, domina.

Os cuidados dela, ferroando e sondando à beira coceguenta da dor, formavam por assim dizer um berço de curvas entrelaçadas, da carne roliça do globo do polegar tangente sobre seu lábio superior ao arco do rosto mascarado inclinado a mais ou menos um palmo acima de seu nariz. Tecida de suaves e longos fios de toque delicado e de pensamento clínico degradado, ela era uma espécie de cesto invertido acima dele, uma choça trançada, uma tenda circular; as pupilas negras que olhavam fixamente tinham o tamanho das perfurações dos tijolos acústicos do teto. Ela estava vendo, e perdoando mesmo enquanto via, um lado dele que ele nunca precisara encarar – um lado inferior infestado de micróbios, restaurado em excesso. Ela o via por um ângulo do qual ele era poupado. Outras pessoas em geral possuem isso, essa aquisição instantânea dos aspectos específicos de um ser exterior misericordiosamente vago na percepção de si mesmo. Mas o caso deles, dele e dela, parecia extremo, como algo saído de um jornalzinho tabloide de supermercado ou de um romance de arlequim. Com serenidade ela presidia sobre seu aviltamento supino. Tendo acabado os inferiores, ela lhe pediu para se sentar e “dar uma boa bochechada”. Ele cuspiu. Sangue, seu sangue, apareceu na cuspideira crua animado pela água centrípeta. Seu sangue era viscoso, fibroso e escuro. Ele estava da mais repulsivo do que sonhara em momentos de maior humildade.

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