A elegância do ouriço
Autor
Muriel Barbery
Editora
Companhia das Letras
Tradução
Rosa Freire d’Aguiar
A resignação prazerosa diante de uma cerimônia do chá
“ ... Sirvo o chá, e o degustamos caladas. Nunca o tomamos juntas de manhã, e essa quebra de protocolo do nosso ritual tem um sabor estranho.
"É agradável", murmura Manuela.
Sim, é agradável porque desfrutamos uma dupla oferenda, a de ver consagrada, por essa ruptura da ordem das coisas, a imutabilidade de um ritual que criamos juntas para que, de tarde em tarde, ele se enquiste na realidade, a ponto de lhe dar sentido e consistência, e que, esta manhã, é transgredido e
assume de súbito toda a sua forma — e também a sensação de que provamos, como provaríamos um néctar precioso, o dom maravilhoso dessa manhã insólita em que os gestos mecânicos tomam novo impulso, em que cheirar, beber, repousar, servir de novo, bebericar equivalem a um novo nascimento. Esses instantes em que se revela a trama da nossa existência, pela força de um ritual que reconduziremos com mais prazer ainda por tê-lo infringido, são parênteses mágicos que deixam o coração à beira da alma, porque, fugaz mas intensamente, um pouco de eternidade veio de repente fecundar o tempo. Lá fora o mundo ruge ou dorme, as guerras se inflamam, os homens vivem e morrem, as nações perecem, outras surgem e breve serão tragadas, e em todo esse barulho e todo esse furor, nessas erupções e nessas ressacas — enquanto o mundo vai, se inflama, se dilacera e renasce — agita-se a vida humana.
Então, bebamos uma xícara de chá.
Assim como Kazuko Okakura, autor do Livro do chá, que se consternava com a revolta das tribos mongóis no século XIII, não porque ela causara morte e desolação mas porque destruíra, entre os frutos da cultura Song, o mais precioso deles, a arte do chá, eu sei que não se trata de uma bebida menor. Quando se torna ritual, o chá constitui o cerne da aptidão para ver a grandeza das pequenas coisas. Onde se encontra a beleza? Nas grandes coisas que, como as outras, estão condenadas a morrer, ou nas pequenas que, sem nada pretender, sabem incrustar no instante uma preciosa pedrinha de infinito?
O ritual do chá, essa recondução exata dos mesmos gestos e da mesma degustação, esse acesso a sensações simples, autênticas e requintadas, essa licença dada a cada um, a baixo custo, de se tornar um aristocrata do gosto, porque o chá é a bebida tanto dos ricos como dos pobres, o ritual do chá, portanto, tem essa virtude extraordinária de introduzir no absurdo de nossas vidas uma brecha de harmonia serena. Sim, o universo conspira para a vacuidade, as almas perdidas choram a beleza, a insignificância nos cerca. Então, bebamos uma xícara de chá. Faz-se o silêncio, ouve-se o vento que sopra lá fora, as folhas de outono sussurram e voam, o gato dorme sob uma luz quente. E, em cada gole, se sublima o tempo."
A revolta cultural diante da queima de carros
“ ... Mas, em suma, depois da novela do porta-guarda-chuvas, fomos comer um doce e tomar um chocolate na Angelina, o salão de chá da Rue de Rivoli. Vocês vão me dizer que não há nada mais distante da temática jovens do subúrbio que queimam carros. Pois é, de jeito nenhum! Vi uma coisa na Angelina que me permitiu entender certas outras coisas. Na mesa ao lado da nossa havia um casal com um bebê. Um casal de brancos com um bebê asiático, um garotinho que se chamava Théo. Hélène e eles se simpatizaram e conversaram um pouquinho. Simpatizaram-se na qualidade de pais de um filho diferente, evidentemente, foi assim que se reconheceram e começaram a conversar. Soubemos que Théo era um garotinho adotado, que tinha quinze meses quando o trouxeram da Tailândia, que seus pais morreram no tsunami, bem como todos os seus irmãos e irmãs. Mas eu olhava em torno de mim e pensava: como ele vai fazer? Afinal de contas, estávamos na Angelina: todas aquelas pessoas bem-vestidas, comendo cheias de nove-horas em confeitarias caríssimas, e que só estavam lá para... bem, pelo significado do lugar, pelo fato de pertencerem a um certo mundo, com suas crenças, seus códigos, seus projetos, sua história etc. É simbólico, sabem. Quando tomamos chá na Angelina, estamos na França, num mundo rico, hierarquizado, racional, cartesiano, civilizado. Como o pequeno Théo vai fazer? Passou os primeiros meses de vida numa aldeia de pescadores da Tailândia, num mundo oriental, dominado por valores e emoções próprias, em que o pertencimento simbólico talvez se expresse na festa da aldeia, quando se homenageia o deus da Chuva, quando as crianças são banhadas em crenças mágicas etc. E ei-lo na França, em Paris, na Angelina, imerso sem transição numa cultura diferente e numa posição que mudou de cabo a rabo: da Ásia à Europa, do mundo dos pobres ao mundo dos ricos.
Então, de repente pensei: Théo talvez tenha vontade de queimar carros, mais tarde. Porque é um gesto de cólera e de frustração, e talvez a maior cólera e a maior frustração não seja o desemprego, não seja a miséria, não seja a ausência de futuro: seja a sensação de não ter cultura, porque a pessoa está dilacerada entre culturas, símbolos incompatíveis. Como existir se não sabemos onde estamos? Se é preciso assumir ao mesmo tempo uma cultura de pescadores tailandeses e de grandes burgueses parisienses? De filhos de imigrantes e de membros de uma velha nação conservadora? Então, queimam os carros porque quem não tem cultura não é mais um animal civilizado: é um bicho selvagem. E um bicho selvagem, isso aí queima, mata, saqueia.
Sei que não é muito profundo, mas mesmo assim tive um pensamento profundo depois disso, quando indaguei: e eu? Qual é o meu problema cultural Por que estou dilacerada entre crenças incompatíveis? Por que sou um bicho selvagem? "