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A ilusão da alma

Autor

Eduardo Giannetti

Editora

Companhia das Letras

Tradução

Ser um homem entre homens, como escreveu Dostoiévski



“... Logo a seguir me veio à mente o caso de Dostoiévski, absolvido da pena de morte a que fora injustamente condenado por um delito político, jovem ainda, graças a um indulto do czar Nicolau I recebido minutos antes do fuzilamento, quando tudo parecia terminado para ele. Recordei ter lido e me animado a copiar em algum lugar — onde estaria? — a impressionante carta que ele escreveu ao irmão mais velho, Mikhail se não me engano, sob o impacto do trauma, antes de partir para o presídio na Sibéria — a “casa dos mortos” — onde haveria de cumprir a pena de exílio e trabalhos forçados a que fora condenado. (Dostoiévski e seus companheiros de paredão nunca souberam, nem eu tinha noção quando li sobre o caso na faculdade, mas o drama da execução e do perdão providencial não passava de uma elaborada farsa: uma encenação montada pelo regime czarista com o propósito de quebrar o ânimo e aterrar o espírito dos jovens agitadores.)

Preciso achar e reler essa carta, anotei na memória, e foi precisamente o que me pus a fazer assim que cheguei em casa e subi correndo as escadas rumo ao escritório. E lá estava ela, copiada à mão na contracapa de um antigo caderno de estudo: Não me sinto abatido, não perdi a coragem, meu irmão. A vida está em toda parte, a vida reside em nós e não no mundo que nos rodeia. Perto de mim haverá homens, e ser um homem entre homens, e sê-lo sempre, em quaisquer circunstâncias, sem desfalecer nem tombar, eis o que é a vida, o verdadeiro sentido da vida. “Isso é grandeza, isso é coragem!”, repeti comigo, buscando tonificar o ânimo. Em nenhuma hipótese posso me deixar abater, fraquejar o espírito, perder a fibra; se tiver mesmo de morrer, pois bem, que seja! — morro de pé, sem lamúrias, sem refecer o brio, morro como um guerreiro.



O genuíno encontro com o álcool



“... O que procuro na bebida, não sei ao certo. O prazer sensível — chope gelado roçando a parede da garganta, ardência coruscante de um gole de aquavita — tem o seu peso, isso é inegável, mas está longe de esgotar a questão. A perspectiva da idade, hoje aprecio, traz outra pista. Uma “sede siderúrgica”, como dizia meu pai, percorre a família; os casos de alcoolismo, espalhafatosos ou velados, um tio chegou a tomar os perfumes da mulher na falta do que beber em casa, não são raros. Sei onde piso — todo o cuidado é pouco. O segredo é não permitir ao costume degenerar em vício. Pertenço à estirpe, mas tenho minhas peculiaridades.

Há um quê de catarse, de sauna periódica do sistema nervoso, na minha relação com a bebida. Mantenho o hábito sob controle e nunca cheguei ao vexame do estupor. Bebo socialmente, quando a ocasião se oferece, mas não é por aí que o apelo maior da bebida me fisga. Custa-me dizê-lo, mas a verdade é que para mim um genuíno encontro com o álcool tem de ser a sós. O copo e eu. O que busco nesses momentos, por estranho que soe, é outro tipo de integridade; um exame de consciência ao qual não tenho acesso no estado usual de abstemia. O que realmente me atrai na bebida, suponho, daí a predileção pelo beber solitário, é poder soltar as rédeas a mim mesmo e ousar cavar mais fundo nos opacos e escondidos da mente; é abrir-me, de tempo em tempo, à aventura de um pensar menos torcido pelas amarras da razão vigilante e inibições da lógica severa. A propensão a beber, é patente, jamais careceu de insignes razões. “Na vitória eu mereço, na derrota eu preciso”, como dizia Churchill.

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