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A tarde de um escritor

Autor

Peter Handke

Editora

Rocco

Tradução

Reinaldo Guarany

O sentimento imperdoável de culpa por se excluir

“ ... E, nesse momento, ele teve, com os sentidos aguçados na hora do final do trabalho do dia, a mesma sensação de culpa imperdoável e, com ela, a de banimento do mundo pelo resto dos tempos. Ao contrário do que lhe acontecia em sonhos, ele podia perguntar-se, de modo sistemático, acerca de seu problema – o escrever, o descrever, o narrar. Qual seria, do escritor, o objeto? Por acaso haveria ainda tal coisa em seu século? Como denominar o tipo de homem cujos feitos e sofrimentos clamam, não apenas por ser relatados, arquivados ou tornar-se matéria de livros de história, senão que, além disso, almejam ser transmitidos na forma de um poema épico ou pequena canção? E a que deus se deveria entoar um canto de louvor? (E quem ainda teria forças para elevar sua lamentação a um deus ausente?) E onde estaria o soberano longevo, cujo reinado não deveria ser comemorado apenas com salvas de canhão? E onde seu sucessor que tomou posse não apenas à luz de flashes? E onde estariam os vencedores olímpicos, cujo retorno à pátria merece algo mais além dos gritos de bravo, do tremular de bandeiras e toque de clarins? E quais os genocidas deste século, que em vez de se erguerem de suas covas com uma desculpa qualquer, ainda poderiam ser mandados para a eternidade do inferno por meio de um único terceto? E, em contrapartida, em vista do fim do mundo não mais apenas imaginado, mas agora possível da noite para o dia, como dominar de maneira simples as coisas caras ao planeta, na forma de uma estrofe ou de um parágrafo sobre uma árvore, uma região, uma estação do ano? Aquele ângulo visual da eternidade – onde existiria ainda? E, apesar disso tudo, quem poderia afirmar que ele era um artista e guardava em seu espaço interior o mundo? A essa ofensiva de perguntas apresentava-se, então, a seguinte resposta: já reconhecera a minha derrota enquanto homem da sociedade, ao me segregar e me pôr à parte – há quantos anos? – para escrever; eu me exclui da companhia dos outros pelo resto da vida. Por mais que eu me sente aqui entre as pessoas, seja cumprimentado, abraçado, partilhe seus segredos até o final, mesmo assim, jamais farei parte disso.”

Perguntas que não querem calar, para um escritor

“ ... Sentou-se em uma das salas de estar com vista para a sala contígua, em seu lugar noturno, uma espécie de cadeira de diretor de cinema onde as coisas lhe ficavam à altura dos olhos. O paletó claro que se encontrava sobre um espaldar desde o último verão fez com que ele sentisse de novo, durante alguns momentos, as pestanas molhadas do nadador ao vento do rio. Por que ele só participava com tamanha pureza das coisas quando se encontrava sozinho? Por que ele só conseguia acolher dentro de si aqueles que com ele estavam, depois que tinham partido, e de maneira tão mais profunda quanto mais longe estivessem? E por que lhe era mais nítida a imagem daqueles ausentes que em pensamento via como pares? E por que só vivia com os que já estavam mortos? Por que apenas os falecidos conseguiam transformar-se em heróis para ele? Colocou uma das mãos na testa, a outra no coração, e ficou sentado como se estivesse num trem noturno, que, em seguida, ele ouviu, de fato, passar lá embaixo, sobre a ponte de aço do rio, fazendo na neve o mesmo barulho que faz um trenó ao deslizar no gelo. Logo em seguida, quando o telefone tocou no corredor, ele não se levantou: não estava à espera de ninguém e também já não queria mais abrir a boca.”

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