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Diário da queda

Autor

Michel Laub

Editora

Companhia das Letras

Tradução

Gói filho de uma puta – e a vergonha que gruda para sempre

“ ... 30. Depois que fiquei amigo de João também comecei a olhar para os meus amigos sem entender por que eles tinham feito aquilo, e como eles tinham me cooptado, e comecei a ter vergonha de ter gritado gói filho de uma puta, e isso se misturava com o desconforto cada vez maior diante do meu pai, uma rejeição à performance dele ao falar de antissemitismo, porque eu não tinha nada em comum com aquelas pessoas além do fato de ter nascido judeu, e nada sabia daquelas pessoas além do fato de elas serem judias, e por mais que tanta gente tivesse morrido em campos de concentração não fazia sentido que eu precisasse lembrar disso todos os dias.

31. Não fazia sentido que eu quase tivesse deixado um colega inválido por causa disso, ou porque de alguma forma havia sido influenciado por isso, o discurso do meu pai como uma reza antes das refeições, a solidariedade aos judeus do mundo e a promessa de que o sofrimento dos judeus do mundo nunca mais haveria de se repetir, enquanto o que eu vi durante meses foi o contrário: João sozinho contra um bando, sem se importar de ser humilhado, sem nunca ter dado um sinal que demonstrasse a derrota quando era enterrado na areia, e foi por causa dessa lembrança, a consciência de que a covardia não era dele, e sim dos dez ou quinze que o cercávamos, uma vergonha que grudaria em mim para sempre se eu não tomasse uma atitude, foi por causa disso que decidi mudar de escola no final do ano.”

Saindo incólume aos efeitos do álcool na saúde, até a mulher dar um basta

“ ... 12. Na época eu já bebia todas as noites. Eu bebia à tarde também, embora não sempre e embora isso não tivesse me atrapalhado substancialmente o trabalho. Meu trabalho é perfeitamente compatível com a bebida, e não só porque acordo tarde e escrevo em casa e só preciso mesmo de duas ou três horas de concentração por dia, o suficiente para entregar dois ou três artigos por semana e publicar dois ou três livros por década, mas porque aos quarenta anos é difícil que alguém tenha sido realmente afetado pelo álcool: ao contrário do que as pessoas acreditam, é possível envelhecer nesse ritmo sem que nenhum órgão do corpo acuse nenhuma alteração em nenhum exame que você faça como que não acreditando que saiu incólume mais uma vez.

13. O álcool antes dos quarenta é mais alegre do que triste. As noites de quem bebe são melhores que as de quem não bebe. As conversas de quem bebe são mais divertidas que as de quem não bebe. As pessoas que bebem são mais atraentes que as que não bebem. A sensação de voltar para casa com o dia claro numa terça-feira e olhar para as pessoas que não bebem a caminho de um escritório onde vão passar quase dois terços do dia orgulhosas porque ao menos não estão como acham que você está, um último conhaque com Nescau na padaria e as pessoas que não bebem dentro dos carros achando que você é apenas um idiota de quarenta anos que não enxerga que não tem mais dezoito, e a sensação de saber que no fim do dia e do mês você estará exatamente como todas elas, tendo pago ou não o seu aluguel, tendo ou não um trabalho, um casamento, um plano de saúde, um vaso de flores, a sensação de que no fim dá tudo na mesma embora você aproveite cada minuto muito mais intensamente que qualquer dessas pessoas é que faz você sair da padaria e caminhar trocando as pernas e dar oi para o porteiro e entrar em casa e não ter vergonha de cair na cama de sapatos até que a sua terceira mulher resolva dar um basta nisso.”

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