menu

Veja na Amazon

Jardim, Cinzas

Autor

Danilo Kiš

Editora

Companhia das Letras

Tradução

Heloisa Jahn

Os rastros deixados pelo pai

“ ... Meu pai tinha o costume de limpar o nariz em pedaços de jornal. Cortava as páginas do Neues Tageblatt em quatro e guardava os pedaços no bolso de dentro da sobrecasaca. Estacava de repente no meio dos campos ou na floresta e fazia um barulho de trompa de caça. Primeiro com toda força, depois mais duas vezes, com menos força. Dava para ouvi-lo, principalmente na floresta, à noite, à distância de um quilômetro. Depois ele dobrava o pedaço daquele jornal levemente herético e jogava-o para a direita, no meio da relva, entre as flores. E às vezes, tomando conta das vacas do Sr. Molnar nos lugares mais recônditos da floresta do conde, lugares onde eu achava que homem nenhum jamais tinha posto os pés, eu encontrava um pedaço amarelado do Neues Tageblatt e pensava comigo mesmo, surpreso: não faz muito tempo meu pai passou por aqui.

Passados dois anos inteiros desde sua partida, quando já havíamos entendido que ele nunca mais voltaria, encontrei numa clareira, no meio da floresta do conde, entre as flores azuis da centáurea, um pedaço descorado de jornal, e disse a minha irmã Anna:

— Olha, só ficou isso do nosso pai.”

O pai que confessa ao filho suas fraquezas, sua sensibilidade doentia

“ ... Eu queria que meu pai tomasse a iniciativa, queria provocá-lo com meu silêncio para que ele me desse uma explicação ou que me fizesse confidências. Ele só foi falar quando chegamos ao café da estação, onde bebeu uma xícara de chicória, que só conseguiu pedir depois de uma pausa longa e difícil. Eu podia ver que ele estava lutando com sua necessidade de beber alguma coisa alcoólica, e o sacrifício me pareceu de bom augúrio.

— Aproveito este momento de lucidez e de confiança mútua para dizer algumas palavras a você — começou ele. — Porque, ao contrário de certas afirmações mentirosas, acho que você é o único que ainda pode ser capaz de me compreender e de ver minhas fraquezas (você está vendo que até minhas fraquezas eu reconheço) com um pouco de distanciamento e de indulgência... Eu sei, eu sei, você não perdoa meu egoísmo, minha intransigência em relação ao mundo. Pode ser que você tenha razão, mas não há mais tempo para explicações ou arrependimento. Você entende, não há mais tempo, mocinho... Mas deixe eu lhe dizer mais uma coisa. Meu papel de vítima, que desempenhei com certo sucesso durante toda a vida — porque, como você sabe, um homem desempenha sua vida, seu destino —, esse papel, como eu ia dizendo, está chegando ao fim. Não é possível — não se esqueça disso nunca — desempenhar a vida inteira o papel de vítima sem que a gente acabe por se transformar numa vítima. Sabe, não há mais nada a fazer, vou ter que me esforçar para desempenhar esse papel com dignidade até o fim. É assim que vou me redimir e que vou ter o perdão de vocês.

Tenho que reconhecer que não compreendi muito bem o que ele estava querendo me dizer. Mas percebi que ele estava falando uma oitava mais baixo do que de costume, o tom da sinceridade, que há muito tinha se apagado nele, e que, por isso, tinha uma ressonância insólita e comovente. Estávamos sentados naquele minúsculo café de estação do interior, quase sozinhos, um diante do outro, debruçados numa toalha xadrez suja. Era o entardecer de um dia de verão e as moscas caíam, tontas com o próprio voo e com o calor. Havia no ar um cheiro de gulash e de cera de assoalho. Num canto havia um címbalo coberto com um lençol, parecia um caixão. Um papel mata-moscas balançava suavemente, escandindo os minutos preguiçosamente. As garrafas, nas prateleiras, faziam a sesta recheada de raios de sol e de seu próprio peso, como granadas ou botões de flores.

— Certas pessoas — continuou me pai — nasceram para ser infelizes e para causar a infelicidade dos outros, que são as vítimas de não sei que maquinações celestes que não compreendemos, as cobaias do mecanismo celeste, revoltados que receberam o papel de revoltados, mas que, de acordo com a lógica impiedosa da comédia celeste, nasceram com as asas cortadas. São titãs sem a força dos titãs, tiranetes mirrados cuja única grandeza é uma dose enorme de sensibilidade, na qual sua força irrisória se dissolve como no álcool. Eles seguem sua estrela, sua sensibilidade doentia, levados por projetos e objetivos de titãs, depois se quebram como ondas sobre os recifes pedregosos do cotidiano. Mas o pior, em seu destino cruel, é a lucidez – essa consciência de seus próprios limites, essa capacidade doentia de distanciamento. Olho para mim no papel que os céus e o destino me impuseram, consciente em todos os momentos de meu papel, mas incapaz, ao mesmo tempo, de me opor a ele com a força da lógica ou a força de vontade... Felizmente, como eu já disse a você, meu papel está chegando ao fim...

Aquele momento único de sinceridade e lucidez foi interrompido pela chegada do trem. Meu pai deixou uma gorjeta generosa e levou seu segredo para o túmulo.”

Mais de

Danilo Kiš

Autor

Danilo Kiš

Editora

Companhia das Letras

Tradução

Heloisa Jahn

citoliteratos

Idealizado por Afonso Machado - Todos os direitos reservados

Design e mentoria por Victor Luna

citoliteratos

Idealizado por Afonso Machado - Todos os direitos reservados

Design e mentoria por Victor Luna

citoliteratos

Idealizado por Afonso Machado - Todos os direitos reservados

Design e mentoria por Victor Luna