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Lavoura Arcaica

Autor

Raduan Nassar

Editora

Companhia das Letras

Tradução

Como um vômito, numa estranha dança familiar

“... (...) fui num passo torto até a mesa trazendo dali outra garrafa, mas assim que esbocei entornar mais vinho foi a mão de meu pai que eu vi levantar-se no seu gesto "eu não bebo mais" ele disse grave, resoluto, estranhamente mudado, "e nem você deve beber mais, não vem deste vinho a sabedoria das lições do pai" ele disse com um súbito traço de cólera no cenho, desistindo na certa de quebrar com seu afeto o meu silêncio, e deixando claro que eu passaria dali pra frente por uma áspera descompostura, "não é o espírito deste vinho que vai reparar tanto estrago em nossa casa" ele continuou cortante, "guarde esta garrafa, previna-se contra o deboche, estamos falando da família" ele ainda disse impiedoso, francamente hostil, me fazendo sentir de repente que me escapava da corrente o cão sempre estirado na sombra sonolenta dos beirais, e me fazendo sentir que a contenção e a sobriedade mereciam ali o meu escárnio mais sarcástico, e me fazendo sentir, num clarão de luz, que era uma dádiva generosa e abundante eu poder me desabar do teto, foi tudo isso e muito mais o que senti com a tremedeira que me sacudia inteiro num caudaloso espasmo "não faz mal a gente beber" eu berrei transfigurado, essa transfiguração que há muito devia ter-se dado em casa "eu sou um epilético" fui explodindo, convulsionado mais do que nunca pelo fluxo violento que me corria o sangue "um epilético" eu berrava e soluçava dentro de mim, sabendo que atirava numa suprema aventura ao chão, descarnando as palmas, o jarro da minha velha identidade elaborado com o barro das minhas próprias mãos, e me lançando nesse chão de cacos, caído de boca num acesso louco eu fui gritando "você tem um irmão epilético, fique sabendo, volte agora pra casa e faça essa revelação, volte agora e você verá que as portas e janelas lá de casa hão de bater com essa ventania ao se fecharem e que vocês, homens da família, carregando a pesada caixa de ferramentas do pai, circundarão por fora a casa encapuçados, martelando e pregando com violência as tábuas em cruz contra as folhas das janelas, e que nossas irmãs de temperamento mediterrâneo e vestidas de negro hão de correr esvoaçantes pela casa em luto e será um coro de uivos, soluços e suspiros nessa dança familiar trancafiada e uma revoada de lenços pra cobrir os rostos e chorando e exaustas elas hão de amontoar-se num só canto e você grite cada vez mais alto 'nosso irmão é um epilético, um convulso, um possesso' e conte também que escolhi um quarto de pensão pros meus acessos e diga sempre 'nós convivemos com ele e não sabíamos, sequer suspeitamos alguma vez' e vocês podem gritar num tempo só 'ele nos enganou' 'ele nos enganou' e gritem quanto quiserem, fartem-se nessa redescoberta, ainda que vocês não deem conta da trama canhota que me enredou, e você pode como irmão mais velho lamentar num grito de desespero 'é triste que ele tenha o nosso sangue' grite, grite sempre 'uma peste maldita tomou conta dele' e grite ainda 'que desgraça se abateu sobre a nossa casa' e pergunte em furor mas como quem puxa um terço 'o que faz dele um diferente?' e você ouvirá, comprimido assim num canto, o coro sombrio e rouco que essa massa amorfa te fará 'traz o demônio no corpo' e vá em frente e vá dizendo 'ele tem os olhos tenebrosos' e você há de ouvir 'traz o demônio no corpo' e continue engrolando as pedras desse bueiro e diga num assombro de susto e pavor 'que crime hediondo ele cometeu!' 'traz o demônio no corpo' e diga ainda 'ele enxovalhou a família, nos condenou às chamas do vexame' e você ouvirá sempre o mesmo som cavernoso e oco 'traz o demônio no corpo', 'traz o demônio no corpo'(...) ...“

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