menu

Veja na Amazon

Um copo de cólera

Autor

Raduan Nassar

Editora

Companhia das Letras

Tradução

Veneno e galão de ácido nas vísceras

“... (...) pois estava gostando de demorar os olhos nas amoreiras de folhas novas, se destacando da paisagem pela impertinência do seu verde (bonito toda vida!), mas meus olhos de repente foram conduzidos, e essas coisas quando acontecem a gente nunca sabe bem qual o demônio, e, apesar da neblina, eis o que vejo: um rombo na minha cerca-viva, ai de mim, amasso e queimo o dedo no cinzeiro, ela não entendendo me perguntou "o que foi?", mas eu sem responder me joguei aos tropeções escada abaixo (o Bingo, já no pátio, me aguardava eletrizado), e ela atrás de mim quase gritando "mas o que foi?", e a dona Mariana corrida da cozinha pelo estardalhaço, esbugalhando as lentes grossas, embatucando no alto da escada, pano e panela nas mãos, mas eu nem via nada, deixei as duas pra trás e desabalei feito louco, e assim que cheguei perto não agüentei "malditas saúvas filhas-da-puta", e pondo mais força tornei a gritar "filhas-da-puta, filhas-da-puta", vendo uns bons palmos de cerca drasticamente rapelados, vendo uns bons palmos de chão forrados de pequenas folhas, é preciso ter sangue de chacareiro pra saber o que é isso, eu estava uma vara vendo o estrago, eu estava puto com aquele rombo, e só pensando que o ligustro não devia ser assim essa papa-fina, tanta trabalheira que as saúvas metessem vira-e-mexe a fuça, e foi numa rajada que me lancei armado no terreno ao lado, campeando logo a pista que me conduzisse ao formigueiro, seguindo a trilha camuflada ao pé do capim alto, eu que haveria àquela hora de surpreendê-las enfurnadas, tão ativas noite afora com o corte e com a coleta, e tremendo, e espumando, eu sem demora descubro, e de balde já na mão deito uma dose dupla de veneno em cada olheiro, c'uma gana que só eu é que sei o que é porque só eu é que sei o que sinto, puto com essas formigas tão ordeiras, puto com sua exemplar eficiência, puto com essa organização de merda que deixava as pragas de lado e me consumia o ligustro da cerca-viva, daí que propiciei a elas a mais gorda bebedeira, encharcando suas panelas subterrâneas com farto caldo de formicida, cuidando de não deixar ali qualquer sobra de vida, tapando de fecho, na prensa do calcanhar, a boca de cada olheiro, e eu já vinha voltando daquele terreno baldio, largando ainda vigorosas fagulhas pelo caminho, quando notei que ela e a dona Mariana, nessa altura, estavam de conversinha ali no pátio que fica entre a casa e o gramado, a bundinha dela recostada no pára-lama do carro, a claridade do dia lhe devolvendo com rapidez a desenvoltura de femeazinha emancipada, o vestido duma simplicidade seleta, a bolsa pendurada no ombro caindo até as ancas, um cigarro entre os dedos, e tagarelando tão democraticamente com gente do povo, que era por sinal uma das suas ornamentações prediletas, justamente ela que nunca dava o ar da sua graça nas áreas de serviço lá da casa, se fazendo atender por mim fosse na cama ou pela caseira no terraço, deixando o café só a meu cargo na falta da dona Mariana, eu só sei que de cara enfezada, e sem olhar pro lado delas, entrei curvado pela porta do quartinho de ferramentas ali mesmo embaixo da escada, larguei lá os apetrechos que tinha carregado pra dar cabo das cortadeiras, mas, previdente, aproveitei a provisão das prateleiras pra me abastecer de outros venenos, além de eu mesmo, na rusticidade daquele camarim, entre pincéis, carvão e restos de tinta, me embriagar às escondidas num galão de ácido, preocupado que estava em maquilar por dentro as minhas vísceras, sabendo de antemão que não ia nisso nada de supérfluo, eu só sei que quando saí de novo ali pro pátio as duas já não conversavam mais, uma e outra, embora lado a lado, se encontravam habilmente separadas, ela não só tinha forjado na caseira uma platéia, mas me aguardava também c'um arzinho sensacional que era de esbofeteá-la assim de cara, e como se isso não bastasse ela ainda por cima foi me dizendo "não é pra tanto, mocinho que usa a razão", e eu confesso que essa me pegou em cheio na canela, aquele "mocinho" foi de lascar, inda mais do jeito que foi dito, tinha na observação de resto a mesma composta displicência que ela punha em tudo, qualquer coisa assim, no caso, que beirava o distanciamento, como se isso devesse necessariamente fundamentar a sensatez do comentário, e isso só serviu pra me deixar mais puto, "pronto" eu disse aqui comigo como se dissesse "é agora" (...).

Mais de

Raduan Nassar

Autor

Raduan Nassar

Editora

Companhia das Letras

Tradução

citoliteratos

Idealizado por Afonso Machado - Todos os direitos reservados

Design e mentoria por Victor Luna

citoliteratos

Idealizado por Afonso Machado - Todos os direitos reservados

Design e mentoria por Victor Luna

citoliteratos

Idealizado por Afonso Machado - Todos os direitos reservados

Design e mentoria por Victor Luna