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Memórias de Adriano

Autor

Marguerite Yourcenar

Editora

Record

Tradução

Martha Calderaro

Os três meios para avaliar a existência humana: o estudo de si mesmo, a observação dos homens e os livros

“... Pouco a pouco, esta carta, começada para te informar sobre os progressos do meu mal, transformou-se no entretenimento de um homem que já não tem a energia necessária para se dedicar longamente aos negócios do Estado. É a meditação escrita de um doente que dá audiência a suas recordações. Já agora pretendo ir mais longe: proponho-me contar-te minha vida. É certo que no ano passado fiz um relatório oficial dos meus atos, assinado por Flégon, meu secretário. Menti o mínimo possível. O interesse público e a decência forçaram-me, contudo, a retocar certos fatos. A verdade que pretendo narrar aqui não é particularmente escandalosa, ou melhor, não o é senão na medida em que toda verdade escandaliza. Não espero que teus dezessete anos compreendam qualquer coisa disso. Empenho-me, porém, em instruir-te e também em chocar-te. Teus preceptores, que eu próprio escolhi, deram-te uma educação austera, fiscalizada e excessivamente protegida talvez, da qual espero, apesar de tudo, que resulte um grande bem para ti mesmo e para o Estado. Ofereço-te aqui, como corretivo, uma narrativa desprovida de ideias preconcebidas e de princípios abstratos, tirada da experiência de um só homem, isto é, de mim mesmo. Ignoro a que conclusões esta narrativa me conduzirá. Conto com este exame dos fatos para definir-me, para julgar-me talvez ou, quando muito, para melhor conhecer a mim mesmo antes de morrer.

Como toda gente, não disponho senão de três meios para avaliar a existência humana: o estudo de si mesmo, o mais difícil e o mais perigoso, mas também o mais fecundo dos métodos; a observação dos homens, que se arranjam frequentemente para ocultar-nos seus segredos ou por nos fazer crer que os têm; e os livros, com os erros peculiares de perspectiva que surgem entre suas linhas. Li quase tudo que nossos historiadores, poetas e narradores escreveram, embora estes últimos tenham reputação de frívolos. A todos devo talvez mais informações do que as recolhidas nas mais diversas situações da minha própria vida. A palavra escrita ensinou-me a apreciar a voz humana, tanto quanto a grande imobilidade das estátuas levou-me a valorizar os gestos. Em compensação, e no decorrer dos tempos, a vida me fez compreender os livros.

Mas estes mentem, ainda os mais sinceros. Os menos hábeis, na falta de palavras e frases com que possam representá-la, traçam da vida imagem pobre e vulgar. Alguns, como Lucano, fazem-na pesada e obstruída por uma solenidade que ela não possui. Outros, pelo contrário, como Petrônio, fazem-na leve, transformando-a numa bola saltitante e vazia, fácil de receber e de atirar num universo sem peso. Os poetas transportam-nos a um mundo mais vasto ou mais belo, mais ardente ou mais suave, por isso mesmo diferente do nosso e, na prática, quase inabitável. Os filósofos, a fim de estudarem a realidade pura, submetem-na quase às mesmas transformações que o fogo ou o pilão operam nos corpos: nada de um ser ou de um fato, tal como os conhecemos, parece subsistir nesses cristais ou nessas cinzas. Os historiadores apresentam-nos as imagens do passado através de sistemas excessivamente completos, com uma série de causas e efeitos demasiado exatos e demasiado claros para serem inteiramente verídicos. Recompõem a dócil matéria morta, e tenho certeza de que mesmo a Plutarco escapará Alexandre. Os narradores, os autores de fábulas milésias, à maneira dos açougueiros, não fazem senão pendurar no balcão do açougue os pedaços de carne apreciados pelas moscas. Adaptar-me-ia dificilmente a um mundo sem livros, mas a realidade não está ali porque eles não a contêm em sua totalidade.

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