Minha pátria era um caroço de maçã
Autor
Herta Müller
Editora
Editora Globo
Tradução
Sílvia Bittencourt
Quando se escreve, o que mais protege é o que mais tira forças
“ … Falamos dos loucos nas ruas, de seu perigo. A avó também vivia no delírio, mas nela este tinha um toque mais livre, quase que divertido. Ela diz ao padre: “Você também é uma andorinha, vou me vestir e depois podemos voar”. E com sua neta ela mantém o seguinte diálogo:”Você tem um marido?”. ”Não.” “Ele usa chapéu?”
Minha avó foi por muitos anos demente. Sim, ela perguntou-me se eu tinha um marido. E, quando disse não, ela perguntou se ele usava chapéu. E ela me olhou, afirmando que antes teria havido ali uma menina pequena, onde ela estaria agora? Ela referia-se a mim quando criança. Daí eu disse: “Ela cresceu”. Então, o que é loucura? A realidade não está mais lá e entra algo surreal no lugar dela. Uma beleza bem particular, que se desloca, ela dói e nos torna angustiados. Presenciei, no caso de minha avó, como a loucura combina suas imagens de forma surpreendente. Metáforas também em pessoas que nunca pensaram sobre a linguagem, originando uma poesia inocente. No caso dos chamados loucos, a lógica assemelha-se às superstições.
No romance Tudo o que tenho levo comigo, uma das personagens principais é Kati-Plantão. Ela realmente existiu no campo de trabalho forçado. E precisava ter um papel central no romance. Para ela criei a maioria das coisas, diálogos, situações. Oskar Pastior sabia pouco dela. O que ele me contou eram coisas gerais Ele não tinha nenhuma relação pessoal com ela. Acho que ninguém tinha. Provavelmente, num campo a situação não é diferente da situação da ană na praça do monumento ou do homem com o buquê de flores, Kati-Plantão não sabia onde estava, ela se bastava. Oskar Pastior foi muito sincero e não queria embelezar, quando afirmou: “Nos todos gostávamos dela não por causa dela, mas por causa de nós, pois sabíamos que, enquanto garantisse mos a sobrevivência dela, ainda não havíamos perdido totalmente o nosso lado humano”. A Kati-Plantão louca era um indicador para os normais. Isso sugeriu-me muita coisa, quando precisei construir situações concretas. E eu conhecia situações concretas, pois chamava minha avó de volta para minha memória. Não era exatamente aquilo, mas através de uma invenção surgia uma realidade sentida. Kati-Plantão mexeu muito comigo, tornando-se minha pessoa preferida ao escrever.
“Você tem um marido?”, “Não.” “Ele usa chapéu?” – esse diálogo com minha avó existiu. Que o padre seria uma andorinha e que ela queria voar com ele, eu inventei. Ela também nunca disse para meu avô que seu animal do coração era um rato. Isso também inventei para a avó do texto. Emociona, mas não é um presente para a pessoa real nem para mim o fato de eu precisar inventar. É certo que voltar a pensar na minha avó real protege-me no ato de escrever, mesmo assim não crio para ela, mas só pela necessidade do texto. E o que mais protege ao escrever é o que mais tira forças. E um equilíbrio, e não sobra nenhum cuidado. ”