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O filósofo no porta-luvas

Autor

Juliano Garcia Pessanha

Editora

Todavia

Tradução

O canto da sereia

“... Era um mistério ele não ter enlouquecido. Bastava manter a falha acesa e o vazio amigado para tornar-se um místico ou um poeta. Esse mantra foi a canção da chegada do jovem, suas boas-vindas. Ele estabeleceu a câmara dual do narcisismo originário. O mestre enaltecia a beleza de ser mero espelho do mundo. A maravilha de ser destinado a guardar o clarão estrangeiro numa época em que ele estava esquecido. Frederico era um eleito; nascia e encorpava. A visitação do mestre, seu sopro pneumático, preenchiam o jovem com uma notícia que concordava intimamente com ele. Pela primeira vez a fraude era interrompida. Os gases venenosos e alheios estavam suspensos. O sopro era uma violação benéfica e o jovem descobria que existia. Percebia em si mesmo a diferença entre o que estava nele na condição de habitantes exógenos e infecciosos e o sopro psíquico coincidente, a visita animadora, quem ele era de verdade. Tinha plena consciência de estar nascendo e agradecia ao holy man pelo mimo certeiro, o cuidado correto. Como nos programas de TV, em que um apresentador pergunta “qual é a música?” e o cantor adivinha com apenas uma ou duas notas qual ela é, o mestre havia adivinhado em pouco tempo a musicalidade do jovem. No início, nas frequências da mônada inicial, está sempre a música e a voz. Sloterdijk diz que quem comanda o devir-sujeito são as sereias, e o jovem experimentou a seriedade desse teorema no canto potente de sua sereia-mestre. De sua boca fluía o leite que ocupava as entranhas do jovem. Ele vertebralizava. Ganhava alma e companhia. O mestre acampava nele junto a espíritos benevolentes. Os sócios se aglutinavam. O que mais surpreendeu Frederico foi notar que ele carregava uma verdade. Havia, de algum modo, um acontecimento prévio, na província infantil, que ele desconhecia. Aquilo que a canção da sereia ressoava era um isto, um tema que coincidia com ele mesmo. Se o mestre encontrava a melodia é porque Frederico a emitia e a criação se dava em cima de algo existente; não era arbitrária. Sem dúvida o mestre devia ser um poliglota musical, capaz de sintonizar emissões muito diferentes, mas o mais espantoso era descobrir que Frederico proferia alguma musicalidade própria.



Como esquimó, no Rio de Janeiro



“... Tudo ia cair do céu para o “anfíbio da fronteira”. As ressonâncias iriam aparecer para aquele que “guardava a orfandade e a súplica”. Ah, as promessas da sereia! Ah, o canto enlouquecido! Anos depois, o já homem velho iria lamentar os onze ou doze anos desperdiçados junto a um mestre que amava o recuo e a fuga do mundo. Um mestre magoado com o ente e infeliz no corpo. O Kazuo também amava o recuo. Mas ele ao menos tinha conquistado as condições materiais para recuar. Ele conhecia o idioma do mundo e sabia que o jovem não estava protegido. O holy man também tinha feito o caminho do mundo. Era um terapeuta conhecido e uma referência para muitos dentro e fora da universidade. Só depois dos quarenta, quando estava com o crédito garantido e o doutorado pendurado na porta, decidiu sair do armário e mostrar a jubilosa face negativa. Muito estranho que ele não indicasse para o jovem o caminho possível.

De nada vale uma singularidade se não há mundo para ela. Um esquimó que enxerga vários tipos de branco depende do polo gelado para existir. Ele não pode existir como esquimó no Rio de Janeiro, mesmo que as praias cariocas tenham inúmeros tons da cor da areia. Um jovem profeta também vai soçobrar se não estiver mergulhado na cultura da velha Jerusalém ou da Grécia arcaica. Assim, o nosso jovem profeta-filósofo era filósofo-profeta apenas entre as quatro paredes do consultório do seu guru. Ali, no interior daquela barca de sereias cantantes, ele podia ser qualquer delírio, mas logo que saía, sem ter muito que fazer, vagava por ruas e shopping centers. Justo o jovem, que havia desvendado a história como uma máquina de controlar esquizofrênicos e que havia transcendido a determinação histórica com a pureza do seu ser nadificado, justamente ele, vivia, na verdade, como um consumidor final e encarnava o ápice da figura historial de seu tempo. Sem um lugar para efetuar seu profetismo ou uma instituição para filosofar, vivia como se fosse o único e a sua propriedade.

O jovem demorou muito para notar essa contradição e sair de dentro da narrativa fabricada com o mestre. Demorou demais para que o mundo e o dinheiro quebrassem a esfera encantada.

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Juliano Garcia Pessanha

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Idealizado por Afonso Machado - Todos os direitos reservados

Design e mentoria por Victor Luna

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