Uma tristeza infinita
Autor
Antônio Xerxenesky
Editora
Companhia das Letras
Tradução
Ser do mundo ou estar no mundo
“... Lá em Herisau, contava o novo médico, ele supervisionou um paciente que era escritor até o momento de sua internação, um sujeito pacato de olhos tristes que se prestava a longas caminhadas. Uma das primeiras perguntas que o médico fez ao autor foi se ele pretendia continuar escrevendo seus contos, romances e poemas ali, pensando que a prática da ficção pudesse vir a ser terapêutica, ao que o paciente respondeu: “não estou aqui para escrever, e sim para ser louco”.
A história era boa por si só, mas o médico explicou que ela não acabava ali. O paciente continuava, sim, escrevendo. Na verdade, sua ânsia pela escrita era tamanha que ele usava qualquer superfície lisa como suporte: cartões de visita, papel higiênico, o verso de recibos. Já que o espaço era pequeno, precisou desenvolver uma caligrafia diminuta, ilegível para qualquer um que não ele, para dar conta de narrar um conto inteiro em um retângulo de oito por quatro centímetros. “Olhando aqueles rabiscos”, disse o médico, “você pensaria que não passavam disso, de rabiscos, até conseguir discernir um ß. Aí você sabia que estava diante da língua alemã.” Todos riram e ficaram intrigados na mesma medida. Nicolas perguntou se os contos eram bons. “São bons, sim”, respondeu o médico de Herisau. “Mas um tanto sem rumo. Provavelmente nunca serão publicados por uma grande editora, ou algo assim. “
Se separar do mundo ou estar com o mundo na cabeça
“... Ele costumava dizer aos seus pacientes que se encontravam em estados de depressão profunda que era necessário recordar-se de um período mais alegre, e os pacientes, por mais que se esforçassem, não eram capazes de se lembrar de uma só memória feliz. Havia algo de muito pernicioso na melancolia: era um vírus que instaurava em sua vítima, em seu hospedeiro, um solipsismo de achar que o mundo era apenas o que podíamos ver sob aquelas lentes sujas e embaçadas.
Quando se nasce, ocorre um longo período de aprendizado até o bebê compreender que não é o mundo, que os objetos estão separados dele, que o pai e a mãe não o integram. Um longo percurso de desenvolvimento cognitivo para entender que é um indivíduo. E então a melancolia aparece, como uma revoada de gafanhotos no horizonte, cujas fronteiras se estendem por todo o globo, e de repente fica impossível se separar do mundo, o mundo está dentro da sua cabeça, e ele é composto por uma nuvem de insetos que trazem destruição e pânico.
Nicolas se lembrou de quando passeava na floresta e se imaginava deitado na relva, contemplando a indiferença da natureza. Sim, a indiferença era projetada pelo estado de espírito, ele sabia mesmo naquela época, assim como um religioso enxergaria na natureza uma ordem e um reflexo do divino, um sentimento que ele conhecia textualmente, mas que nunca vivenciara.
Porém, agora até mesmo a natureza parecia estar a uma distância inalcançável, como se a terra tivesse se aberto entre Nicolas e a floresta, e ao olhar para baixo ele visse alguma coisa que não pertencia ao reino natural, uma escuridão que violava o senso comum, a geografia e a geometria. Ele estava enjaulado dentro da própria mente, e aquilo era um estágio ainda mais profundo da solidão. “