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Barba ensopada de sangue

Autor

Daniel Galera

Editora

Companhia das Letras

Tradução

A sensação indefinida de estar a um passo da infelicidade

“... Nos dias seguintes pensa pela primeira vez na ideia de voltar a Porto Alegre ou pelo menos sair dali e se mudar para outro lugar. Começa a dormir demais. Levanta no meio da manhã com o motor dos barcos que voltam da pescaria ou a conversa da rapaziada que vem fumar maconha na escadinha. Passa mel e óleo de gergelim numa fatia bem grossa de pão integral e mastiga sentindo o vento salgado na cara. Quando entra lua cheia o tempo não muda até a lua mudar de fase. Vento leste traz tempo ruim. Quem lhe ensinou essas coisas? Não consegue lembrar. O inverno o entusiasma por razões que não compreende. Gosta de requentar toda noite o panelão de sopa, de sentir a lufada de ar polar queimando na pele quando abre o zíper da roupa de borracha depois de nadar. Fica à vontade na estação que os outros esperam passar. Sente a presença constante de uma coisa indefinida que está demorando para acontecer. Fases assim são o mais próximo que conhece da infelicidade. Às vezes desconfia que está infeliz. Mas se ser infeliz é isso, pensa, a vida é de uma clemência prodigiosa. Pode ser que ainda não tenha visto nem sombra do pior mas se sente preparado.

Uma vez Viviane lhe falou a respeito dos deuses gregos, tema de leituras que vinha fazendo para o mestrado em literatura que cursou na época em que já moravam juntos. Imagina se a vida real fosse assim. Deuses dizendo de antemão que a gente vai vencer a batalha, sobreviver ao naufrágio, reencontrar a família, vingar a morte do pai. Ou o contrário, que vamos ser derrotados ou sofrer coisas horríveis durante muitos anos antes de conseguir o que queremos, que vamos nos perder ou mesmo morrer. E eles entram em detalhes, dizem exatamente como, quando e onde e depois saem voando com o vento e deixam o mortal ali com a obrigação de cumprir ou executar o que já foi decidido pelos tiozinhos do Olimpo. Imagina que merda. E ele tinha dito que não achava ruim. Que gostava da ideia de que há deuses soprando em nosso ouvido uma boa parte do que ainda irá nos acontecer. Não crê nisso de fato, não há lugar para deuses em seu coração, mas tem a sensação de que alguma coisa equivalente está em curso no mundo profano, um processo natural, algum mecanismo no corpo ou na mente que antecipa coisas que mais tarde poderemos chamar de destino. Na opinião dele a vida era mesmo um pouco desse jeito. Já se sabe em grande medida como as coisas vão ser. Para cada surpresa há dezenas ou centenas de confirmações do que já era mais ou menos esperado ou intuído e toda essa previsibilidade tende a passar despercebida. Viviane ficava louca com isso, em parte porque ele não tinha a mesma cultura e vocabulário que ela e não conseguia se expressar direito, em parte porque ela discordava da ideia com veemência. Ela falava então de livre-arbítrio, a liberdade do homem para escolher, para decidir como as coisas serão de acordo com a vontade, coisa que ela não aceitava que ele não aceitasse com a mesma naturalidade que ela. As discussões podiam começar com uma piadinha ou uma provocação carinhosa e evoluir para bate-bocas exasperantes nos quais, na falta de argumentos e arsenal retórico, ele precisava defender sua posição com teimosia ou silêncio.

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