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O deus das avencas

Autor

Daniel Galera

Editora

Companhia das Letras

Tradução

A escuridão antes da luz

“... Quando entram no apartamento, têm a demorada impressão de que ele está habitado por um desses moradores secretos que se escondem por dias ou meses a fio em armários, sótãos ou embaixo da cama. As persianas e vidros continuam fechados e o ar-condicionado e a televisão ficaram ligados, deixando a atmosfera gelada e elétrica. Não lembram de ter usado os talheres, tigelas e copos sujos espalhados na sala e no quarto. O banheiro está molhado e quente, como se alguém tivesse acabado de sair do banho. Manuela diz que é como se não morassem mais ali, como se estivessem prestes a abandonar aquele lar. As próximas horas serão as mais difíceis para Manuela e começam com ela sentando na poltrona de amamentação que puseram no quarto do bebê. Ela mexe o corpo como se a cadeira fosse de balanço. Lucas espia da porta e vê o rosto transido, um esgar quase silencioso e sem lágrimas visíveis, para o qual não lhe ocorrem palavras de conforto. Fuma na janelinha da área de serviço e entre um cigarro e outro vai conferir se Manuela ainda está na poltrona. Depois do quarto cigarro, escuta o chuveiro e o murmúrio de alguma canção tocando na caixinha de som. A porta aberta do banheiro exala uma névoa luminosa que remete a um laboratório de experimentos secretos. Ele se aproxima e vê Manuela nua, sentada na bola de pilates sob a cascata escaldante, de olhos fechados e lábios comprimidos, com as mãos pousadas na barriga, mexendo de leve os quadris e murmurando uma melodia que soa como um encantamento. É atingido em cheio, as lágrimas brotam de seus olhos e ele dá passos sub-reptícios até a penumbra do quarto do casal, que mais parece uma garagem de depósito com malas, livros, pilhas de sapatos e caixas cheias de objetos que não sabem onde botar desde a reorganização do lar para a chegada do bebê. Deita na cama e chora por alguns minutos, escutando Manuela cantar baixinho, gemer e respirar regularmente, aconchegada em sua nuvem de vapor. A imagem no banheiro não sai da sua cabeça e ele sente que testemunhou um mistério arrebatador, o flagrante de um corpo e mente perfeitamente alinhados à experiência de estar viva, como uma dessas flores raras que desabrocham poucas horas por ano no coração de selvas remotas. O que ela está vivendo, Lucas conclui, ele não pode viver, e o que ela está vivendo tem a ver com coisas que ela viveu muito antes de ele entrar na vida dela, embora nesse instante a vida de um seja a vida do outro numa sobreposição quase completa. Esse quase, porém, é imenso, é a distância intransponível de um fio de cabelo, o universo compactado numa cabeça de alfinete, é tanta coisa que não lhe diz respeito nem nunca dirá. O rangido da bola de borracha nos azulejos do boxe cessa mais uma vez e ela volta a inspirar fundo e a soprar forte, na cadência da dor. Isso não pode durar muito, ele balbucia, precisa acabar logo, por favor acaba logo.



Convivendo com humanos androides 



“... “Do que você estava com medo, Nora?”, disse, finalmente, o Terapeuta.

“Não sei. Mas esperei até hoje pra ligar ela de novo. Queria ligar ela aqui. Me sinto mais segura. Podemos ligar hoje?”

“Claro. É pra isso que estamos aqui.” Nora olhou em volta como se buscasse autorização do grupo. Alguns sorriram e assentiram para ela, procurando lhe transmitir segurança. Ela colocou o dedo na nuca da androide, que entreabriu os lábios, abriu um pouco as pálpebras e inspirou como se despertasse de um transe, inflando o peito. O interior de sua boca aberta se umedeceu e todo o seu corpo começou a passar por microajustes de postura. Eu nunca tinha visto nada parecido e fui atravessado por uma descarga de desejo sexual que me deixou profundamente perplexo. Eu já tinha lido muita coisa sobre os artefatos criados para hospedar cópias de mentes, e não havia, até hoje, consenso sobre o que se passava exatamente com os dados armazenados enquanto eles se achavam desligados ou em estado de suspensão. Sempre que eu ligava o ovo, minha mãe se comportava como se tivesse permanecido de fato inativa durante todo o período que permaneceu desligada, e em geral só dava qualquer sinal de atividade depois que eu me manifestasse, dizendo bom-dia ou fazendo uma pergunta, por exemplo. Ela era capaz de se exaltar e demonstrar emoções intensas por meio da voz artificial, mas seu estado-padrão era mais próximo da serenidade inerte de uma máquina. Mas a pupa de Nora não era um ovo dotado de alto-falantes invisíveis. Uma vibração percorreu a pele da androide a partir do plexo solar, como se uma corrente elétrica radial eriçasse seus pelos translúcidos. Ao despertar, ela dava a forte impressão de emergir de uma intensa atividade introspectiva que jamais cessava, nem mesmo quando estava desativada. Mas eu tinha as minhas convicções e sabia que estava sendo enganado. Todos esses produtos haviam sido desenvolvidos para apertar os botões certos na psicologia dos humanos que interagissem com eles. Sentindo o coração palpitar de desejo, eu me assemelhava a uma cobaia copulando com um boneco embebido de feromônios.



Questões de um apicultor



“... Chama mastiga com seus dentes podres e pensa no buraco na gengiva da pequena Lalita, nas pelancas dos braços da Velha, nos bicos doloridos de seus peitos e no sangue que a qualquer momento deve lhe descer outra vez pelas coxas. Vai sentindo que se avizinham, naquele entreposto entre os seus sentidos e aquilo que captam, respostas para as grandes perguntas que rondam seu coração. Dentro do peito é como se uma bacia de água morna se agitasse com vigor, cada derramamento a um só tempo um desperdício e um gozo. Chama se dá conta, não pela primeira vez, de que se sente muito sozinha ali. As crianças são muito pequenas e os adultos grandes demais para ela. O Organismo funciona no acolhimento das diferenças, mas ela sente falta de uma unidade que não sabe descrever nem para si mesma no caroço sem palavras do seu ser. Sabe bem quanta sorte tem de viver no Topo e não fora dele, de ser aliada das abelhas, de ter a tutela da Velha e de Celso, mas não consegue ficar satisfeita. Há nas outras vidas que é capaz de imaginar e nos outros entes dos quais deseja se aproximar um quebra-cabeça que a persegue e a desafia. Não sossegará enquanto não resolvê-lo, mas será isso possível?

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