Diário de um ano ruim
Autor
J. M. Coetzee
Editora
Companhia das Letras
Tradução
José Rubens Siqueira
Quando não existe nada na vida melhor do que escrever, até chegar o declínio da aridez da ficção
“ ... "Eu não concebo a inspiração como um estado de graça", diz Gabriel García Márquez, "nem como um sopro divino, mas sim como uma reconciliação com o tema às custas de tenacidade e domínio... o autor atiça o tema e o tema atica o autor... todos os obstáculos caem por terra, todos os conflitos desaparecem, nos acontecem coisas que nunca sonhamos e então não existe nada na vida melhor do que escrever."
Uma ou duas vezes na vida experimentei o voo da alma que García Márquez descreve. Talvez esses voos venham efetivamente como recompensa da tenacidade, embora eu pense que fogo constante descreve melhor a qualidade necessária. Mas, seja como for que chamemos essa coisa, não a tenho mais.
Leio o trabalho de outros escritores, leio as passagens de densa descrição que com cuidado e trabalho compuseram com o propósito de evocar espetáculos imaginários ao olho interior, e meu coração se encolhe. Nunca fui muito bom na evocação do real e tenho ainda menos estômago para isso agora. A verdade é que nunca tive muito prazer com o mundo visível, não sinto com muita convicção o impulso de recriá-lo em palavras.
Crescente distanciamento do mundo é, claro, o que muitos escritores experimentam ao ficarem mais velhos, ao ficarem mais frugais ou mais frios. A textura de sua prosa se toma mais rala, seu tratamento de personagem e ação, mais esquemático. A síndrome é geralmente descrita como decréscimo de poder criativo; sem dúvida está ligada à atenuação da força física, acima de tudo da força do desejo. No entanto, visto por dentro, esse mesmo processo pode ser interpretado de maneira bem diferente: como uma liberação, um esvaziamento da mente para assumir tarefas mais importantes.
O caso clássico é o de Tolstói. Ninguém mais vivaz para o mundo real do que o jovem Leon Tolstói, o Tolstói de Guerra e paz. Depois de Guerra e paz, se formos atrás do que todos dizem, Tolstói entrou num longo declínio para o didatismo que culminou na aridez de sua última ficção breve. Porém, para o Tolstói mais velho, a evolução deve ter parecido bem diferente. Longe do declínio, ele deve ter sentido que estava se livrando das cadeias que o haviam escravizado às aparências, permitindo que encarasse diretamente a única questão que ocupava de fato sua alma: como viver.”