Entre amigos

“ ... Osnat tinha trazido consigo urna flauta simples, dessas que aqui se distribuem entre os alunos das primeiras séries, e enquanto Martin comia ela tocou para ele "À beira do mar da Galileia há um palácio esplendoroso" e depois "Dizem que há um país”. Martin comeu um pouco do omelete, provou um pouco do iogurte contorcendo o rosto enrugado, não tocou na salada nem no pão, mas permitiu que Osnat lhe servisse um chá morno numa xicara que tinha trazido do refeitório. Ele não tinha no quarto nem um bule seu nem xícaras suas, por questão de princípio: a prática de juntar coisas é a maldição da sociedade humana. É da natureza das coisas materiais se apoderar lentamente da alma e escravizá-la. Martin tampouco acreditava na instituição familiar, porque a vida do casal em si mesma cria uma barreira supérflua entre a célula familiar e a sociedade. Achava que a comunidade como um todo tinha de criar e educar todas as crianças, e não só seus pais biológicos. Tudo aqui pertence a todos nós, todos nós pertencemos uns aos outros e as crianças têm de ser crias de todos nós. O quarto em que Martin Vanderberg morava era mobiliado com uma simplicidade monástica: uma cama, uma mesa, um grande caixote munido de uma cortina no qual pendurava as roupas de trabalho e as roupas de lazer e mais um caixote comprido apoiado em pés de ferro que ele usava para guardar seus livros, em seis idiomas, entre os quais obras de filosofia e de pesquisa, quatro ou cinco romances em alemão, em holandês, em esperanto, um ou outro livro de poesia, alguns dicionários e uma Bíblia ilustrada por Gustave Doré. Na parede estava pendurado o retrato de Ludwig Lazarus Zamenhof, o criador do esperanto, língua que um dia seria falada por todos os habitantes do mundo nos cinco continentes para que fossem abolidas toas as barreiras entre um homem e outro, entre um povo e outro, como tinha sido antes da maldição da Torre de Babel.“

‍