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Outras vidas que não a minha

Autor

Emmanuel Carrère

Editora

Alfaguara

Tradução

André Telles

Sentir e saborear a felicidade, enquanto existe

“ ... O que mais seduzia Philippe era partir um mês antes dos outros e passar esse mês sozinho em Medaketiya sabendo que eles em breve viriam ao seu encontro. Desfrutava ao mesmo tempo da solidão e da felicidade de ter uma família: uma mulher com quem formava uma boa dupla, uma filha maravilhosa, tão maravilhosa que dera um jeito de, arranjando um marido, arranjar-lhe um amigo, simplesmente seu melhor amigo, e uma netinha que parecia com a mãe na sua idade, modo de dizer. Realmente, aquela vida era uma vida boa. Soubera assumir riscos quando necessário – instalar-se em Saint-Émilion, mudar de profissão, divorciar-se –, mas não fora atrás de quimeras, não causara grande sofrimento à sua volta, não almejava mais conquistar o que quer que fosse, apenas saborear o que conquistara: a felicidade. Outra coisa que ele tinha em comum com Jérôme, rara num homem de sua idade: aquele olhar sutilmente sarcástico, sem maldade, sobre as pessoas que se agitam e se estressam e conspiram, que têm sede de poder e de ascendência sobre seu semelhante. Os ambiciosos, os chefetes, os jamais satisfeitos. Jérôme e ele eram daqueles que trabalham de verdade, mas que, uma vez encerrado esse trabalho, recebido o dinheiro, desfrutam dele tranquilamente em vez de se sobrecarregarem com uma tarefa extra para ganhar um dinheiro extra. Tinham tudo de que precisavam para estarem satisfeitos com sua sorte, nem todo mundo tem essa sorte, mas tinham também, e acima de tudo, a sabedoria de se contentar com aquilo, de amar o que possuíam, de não desejar mais. O dom de levar a vida sem culpa e sem pressa, de entabular uma conversa preguiçosa e sacana à sombra da bananeira, bebericando uma cerveja. Nada como cultivar nossa horta. Carpe diem. Para vivermos felizes, vivamos escondidos. Não é assim que Philippe formula, mas é assim que entendo e me sinto quando ele, de bem longe, fala da sabedoria, eu que vivo na insatisfação, na tensão perpétua, que corro atrás dos sonhos de glória e destruo meus amores porque sempre imagino que num outro lugar, um dia, mais tarde, encontrarei coisa melhor.”

Deus, o inconsciente e o Tao

“ ... Começara uma psicoterapia depois do seu primeiro câncer. Isso não tinha nada a ver, ele afirma, com a doença, da qual se julgava curado, não, ele entrara nessa devido a problemas sexuais. Não se estende sobre o assunto, mas o que me parece certo é que a confiança sexual que hoje ele demonstra é proporcional à indigência que a precedeu. No momento do segundo câncer e da amputação, seu psicoterapeuta ia vê-lo diariamente na clínica. Era apenas dez anos mais velho que Étienne. Um paciente jovem, canceroso, amputado, era uma novidade para ele. Dizia: é uma estreia para nós dois, não sei como agir, não sei aonde vamos. Étienne achava isso tranquilizador.

A psicoterapia transformara-se em análise, que durou nove anos. Ao longo desses anos em que Étienne foi aluno da ENM em Bordeaux, depois magistrado no Norte, pegava duas vezes por semana o trem de Paris e nunca faltou a nenhuma das sessões. Dessa experiência assídua, resultou, mais que uma familiaridade, uma confiança quase religiosa no inconsciente. Não é, pelo menos não se diz, crente, mas tem a vocação e o dom de se abandonar a essa força que, em seu íntimo, é mais poderosa que ele, talvez também mais ponderada. Essa força não lhe é exterior, não é um deus pessoal nem transcendente. É o que ao mesmo tempo que é ele não é ele, que o supera, inspira, maltrata e salva, e o que pouco a pouco ele aprendeu a deixar acontecer. Eu não diria que ele chama de inconsciente o que os cristãos chamam de Deus, mas talvez o que os chineses chamam de Tao.

Ao chegarmos a este ponto, eu começo a pisar em ovos. Imagino que ele tenha falado muito de seu câncer em análise, e, para dizer as coisas brutalmente, espanta-me que com tamanha fé no poder do inconsciente ele se declare a tal ponto hostil a toda interpretação psicossomática do câncer. Nesse aspecto, atira em tudo que vê. As pessoas que dizem: isso vem da cabeça, ou do estresse, ou de um conflito psíquico não resolvido, tenho vontade de matá-las, ele me diz, e também tenho vontade de matá-las quando dizem o acaciano: você sobreviveu porque lutou, porque teve coragem. Não é verdade. Há pessoas que lutam, que são muito corajosas e não sobrevivem. Exemplo: Juliette.”

O câncer e as duas espécies de homens: os que sonham frequentemente estar caindo no vazio, e os outros

“ ... É para isso que serve, diz ele, o tratamento dos cancerosos: para ver e reconhecer esse sofrimento, para fazer com que pelo menos dele o paciente se cure. Isso não o impedirá de morrer, mas, entre Molière, que escarnecia dos médicos cujos doentes morrem curados, e o grande psicanalista inglês Winnicott, que pedia a Deus a graça de morrer plenamente vivo, Pierre Cazenave coloca-se claramente do lado de Winnicott. Seu cliente é o doente que recebe sua doença não como uma catástrofe acidental, mas como uma vida que lhe concerne intimamente, uma consequência obscura de sua história, a expressão definitiva de seu infortúnio e de sua perplexidade ante a vida. Alguma coisa no narcisismo primário desse doente deixou de ser construída, e quando Pierre Cazenave fala desse doente está falando também de si mesmo. Uma falha profunda sulca o núcleo mais arcaico da personalidade. Há, diz ele, duas espécies de homens: os que sonham frequentemente estar caindo no vazio e os outros. Estes tiraram a sorte, a sorte grande, de viver em terra firme, mover-se por ela com desenvoltura. Aqueles, ao contrário, padeceram a vida inteira de vertigem e angústia, do sentimento de não existir realmente. Essa doença do bebê pode subsistir sorrateiramente no adulto durante muito tempo, sob a forma de uma depressão invisível até mesmo para ele, e que um dia vira um câncer. Não nos surpreendemos então, nós o reconhecemos. Sabemos que aquele câncer éramos nós. A vida inteira, tememos alguma coisa que, de fato, já chegou. Naqueles que viveram esse desastre e que naturalmente o esqueceram, é sua lembrança que aflora ao anúncio da doença mortal – o desastre atual ativando o antigo e provocando uma depressão psíquica intolerável cuja origem não compreendemos. Essa depressão de fato alarmante, Pierre Cazenave analisa-a como o sobressalto desesperado desse ser clandestino que, no fundo de você, nunca teve direito à existência e que percebe subitamente que seus dias estão contados. Para quem sempre teve a sensação de existir, o anúncio da morte é triste, cruel, injusto, mas é possível integrá-lo na ordem das coisas. Mas e para quem, no âmago de si, sempre teve a impressão de não existir de verdade? De não ter vivido? A este, o psicanalista propõe transformar a doença e inclusive a aproximação da morte numa última chance de existir de verdade. Ele cita esta frase misteriosa, dilacerante, de Céline: “Talvez seja isto que procuremos ao longo da vida, nada além disto, o maior sofrimento possível para nos tornarmos nós mesmos antes de morrer.”

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Emmanuel Carrère

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