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Um romance russo

Autor

Emmanuel Carrère

Editora

Alfaguara

Tradução

André Telles

A droga do amor

“ ... Quando chego em casa, você está tomando banho. Tiro a roupa, me enfio em cima de você na banheira, Nos encaixamos bem, a água está quente, acaricio suas pernas, seus pés que repousam sobre meus ombros, fecho os olhos, sinto-me protegido. Devo ter cochilado por um instante, lembro-me quando acordei de uma conversa calma, com longos intervalos entre cada frase, uma conversa que o cansaço ameniza bastante. Mas em seguida saímos para jantar na rue des Abbesses, tomo vinho branco atrás de vinho branco sem tocar no prato e me torno odioso. Digo que, você que é tão ciumenta, mesmo assim você achou um jeito de me enganar um ano inteirinho. Que você não é a mulher que dispensou todo mundo, mas a mulher que todo mundo dispensou, aquela com quem trepamos babados no fim de uma festa e depois esquecemos. Que seus amigos são o fim da picada e seus amantes também. Não poupo ironias a respeito de Arnaud, tão comportadinho, tão confiável que chega a dar enjoo. Imagino você, daqui a dez anos, vivendo num conjunto de subúrbio com seu extremoso marido que dá um brilho no carro aos domingos e a quem você trai o máximo que pode, aliás, não, não mais o trai, você não é mais tão jovem, tão bonita. Digo: o amor que sinto por você é como uma droga, vai demorar mais do que pensava para me desintoxicar dele mas vou conseguir, não se preocupe, aliás também não me preocupo com você, você vai continuar conhecendo homens mais confiáveis que eu, Arnauds sem fim, coitadinho do Arnaud, sinto muito por você. Encho-a de desprezo e de ódio, você me escuta sem responder. Apenas num determinado momento me fala do sorriso pavoroso que viu no meu rosto quando cheguei do consultório do dr. Weitzmann.

Mas esse sorriso pavoroso foi você que, mentindo como mentiu, estampou no meu rosto.

Apesar de tudo, você parecia feliz da vida com a minha desgraça...

Volto bêbado repetindo que não quero mais tocá-la, que você me enoja, vou me deitar na cama de Jean-Baptiste com a impressão de estar fazendo, a princípio, um cena pueril à espera do momento de me sair dessa sem cair no ridículo. De madrugada, você vem me buscar, me faz voltar para nossa cama, volto a dormir enlaçado em você, encolhido, seus seios nas minhas mãos, e sonho um sonho atroz no qual um garotinho descobre que está prestes a virar mongoloide. Ele chora, revolta-se comigo, fico consternado, impotente, e tudo que consigo lhe dizer é: você não será infeliz porque não terá consciência disso.

Você sai para trabalhar, fico sozinho. Estou de ressaca, fumo desbragadamente. Para me ocupar, faço uma limpeza nos novos e-mails baixados. Quase mil. Uma escritora que se diz conhecida mas não dá o nome deseja manter comigo uma correspondência velada sobre o tema: até onde um escritor pode condenar seus conhecidos ao opróbrio público, sacrificá-los ao seu próprio gozo? Ela está convencida de que a novela teve consequências terríveis na minha vida e na nossa relação, se a heroína for de fato minha companheira, e não uma amante eventual. Não aprecio nem os mistérios nem o tom dessa mensagem, mas ela toca o cerne da questão. Pergunto-me se escrever, para mim, significa necessariamente matar alguém.”

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Emmanuel Carrère

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