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Vista do Rio

Autor

Rodrigo Lacerda

Editora

Companhia das Letras

Tradução

A simplicidade de um diagnóstico bem brasileiro

“... Se fiquei nervoso por algum motivo, foi graças a minha aflição normal toda a vez que vou fazer um check-in ou postular uma vaga em qualquer coisa que seja; hotel, avião, clube, empreendimento, a cama de alguém, hospital etc. Gostaria de dizer, como o Groucho Marx: “Sempre desconfie do clube que te aceitar como sócio”, mas na verdade o meu medo é mesmo o de não ser admitido, por atraso, por falta de documentos e/ ou de qualificações pessoais.

Uma vez no quarto, Virgílio arrumou seu minicosmos cultural, deitou na cama, ainda com a roupa da rua, e ligou a televisão. Eu sentei num daqueles odiosos sofazinhos de acompanhante, ao lado da pilha de lençóis que à noite fatalmente iria usar. Pensei naquela situação, espantado com a vida.

Havia um banheiro anexo, e uma grande janela atrás do sofá onde eu estava, que trazia o ar e o barulho da cidade até perto de nós. Para enfrentar o momento, apanhei um folheto numa mesinha ao lado. Em letras grandes, e na primeira página, a pergunta era quase transcendental: “Você sabe o que é humanização?”.

Realmente é esforço considerável pensar num hospital de maneira positiva; não como lugar de doença e sofrimento, mas de cura e prevenção. Acho que os técnicos do Ministério da Saúde estão pedindo demais de mim. Nem eu consigo ser tão otimista. Outro dia li uma frase (tenho mania de memorizar frases que julgo lapidares…): “Não sou nem otimista nem pessimista. Entre mim e o mundo não há nenhum mal-entendido”. Entretanto, concordo que o avanço tecnológico da medicina virou obstáculo ao relacionamento direto entre médicos e pacientes. Hoje em dia, poucos são os médicos com poder de observação, que não se baseiam em exames sofisticados para te dizer que você está resfriado. Olho no olho, jamais. E se nem assim conseguem fazer o diagnóstico, saem-se com a tal da “virose inespecífica”. Quando criança, por exemplo, acordei um belo dia com um buraco mínimo no peito, dentro do qual eu sentia fisgadas incômodas. Minha avó materna me levou ao pediatra, que me recomendou a outro especialista sei lá de quê, ambos fizeram exames de ponta, e simplesmente não conseguiram dizer o que era. Enquanto isso, as pontadas incômodas viraram dolorosas, e depois evoluíram para o estágio de lancinantes. Perguntada sobre o assunto, a simplória Madalena, faz-tudo da casa de Virgílio, mistura de antiga babá, governanta e sombra, pontificou e acertou, literalmente, na mosca: era berne. Tinha um bicho me comendo por dentro.



A excelência artístico-ético-sexual, ou sexo-ético-artístico



“... Meu pai uma vez me perguntou qual de duas máximas latinas eu preferiria como filosofia de vida: “Aproveita o dia” ou “Áurea mediocridade”. Contando a Virgílio, ele se derramou em elogios à maneira como meu pai me educava. E quando retruquei, dizendo que tinha dúvidas se a contradição explícita nas opções era mesmo obrigatória, ele me respondeu: “Sofisma, machinho sensível, sofisma. Teu pai não era Deus pra te ensinar isso”.

Há quem diga que a vida vale não pelo que se vive, mas pela forma como é vivida. Sendo assim, uma biografia minimalista como a que eu vinha construindo poderia ser de grande profundidade. O sedentário poderia ter uma trajetória existencial tão rica quanto o aventureiro, o casto e o devasso idem, o pintor e o cego idem idem, e por aí vai. Embora achasse esta uma bela ideia, e quisesse muito aplicá-la na vida, não conseguia sentir que fosse verdadeira. Para mim, era uma racionalização atraente, mas um tanto falsa. Mesmo usando, constrangido por circunstâncias externas e internas, a máscara de pessoa equilibrada, eminentemente contemplativa, sentia latente uma ambição desmedida que me humilhava, uma inquietação, uma ânsia de agir, de fazer, de construir um futuro cheio, de vida, de experiências, de permanente e simultânea excelência artístico-ético-sexual, ou sexo-ético-artístico, ou, se tudo desse errado, pelo menos ético-alguma coisa. Diante de tanta cobrança, diante de tantas limitações, qualquer possibilidade de pacificação, é claro, ficava completamente afastada. Era a minha angústia.

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Rodrigo Lacerda

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Design e mentoria por Victor Luna

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