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Contos

Autor

Hermann Hesse

Editora

Civilização Brasileira

Tradução

Angelina Peralva

Mais que desejar ser amado, é preciso querer amar

(Conto: Augusto)



“… — Preocupa-te que o gole de vinho pudesse fazer-me mal? Descansa! É gentil de tua parte que te preocupes comigo, ou não o teria suspeitado. Mas agora conversemos um pouco como nos velhos tempos! A mim me parece que te fartaste da vida fácil? Compreendo isso, e quando eu for embora, podes tornar a encher teu copo e bebê-lo. Mas antes preciso contar-te algo.

Augusto apoiou-se à parede e escutou a voz boa e agradável daquele homenzinho tão velho, voz que lhe restara familiar desde a infância e que acordava em sua alma sombras do passado. Uma vergonha e uma tristeza profundas apoderaram-se dele, como se mirasse nos olhos sua própria e inocente infância.

— Bebi teu veneno — continuou o velho — porque sou eu o culpado de tua miséria. Quando do teu batizado tua mãe fez por ti um desejo, e eu o cumpri, embora ele fosse insensato. Não tens necessidade de conhecê-lo, tornou-se uma maldição, como tu próprio sentiste. Lamento que tenha sido assim, e eu me alegraria bem, se ainda chegasse a ver-te de novo uma vez comigo em casa, sentado diante do fogão e que ouvisses os anjos cantarem. Não é fácil, e no momento parece-te talvez impossível que teu coração jamais se torne curado, puro e sereno. É possível, porém, e eu gostaria de pedir-te que tentes. O desejo de tua pobre mãe saiu-te mal, Augusto. Como seria agora, se me permitisses realizar também um desejo teu, qualquer um? Não quererás desejar dinheiro e fortuna, nem poder ou amor de mulheres, disso já tiveste bastante. Medita, e quando achares que sabes de um encanto que possa mudar tua vida transtornada e fazê-la de novo mais bela e melhor, e fazer-te a ti novamente feliz, então deseja-o!

Augusto quedou mergulhado em profundas reflexões e calou-se, mas estava cansado demais e sem esperanças, assim disse depois de um momento:

— Eu te agradeço, padrinho Binsswanger, mas creio que minha vida já não pode ser consertada. É melhor que eu faça o que pensei fazer, quando entraste. Mas te agradeço teres vindo.

— Sim — disse o velho com prudência — posso imaginar que não te pareça fácil. Mas talvez se pensardes ainda um pouco, Augusto, talvez te ocorra aquilo que até agora mais te faltou, ou talvez possas te lembrar dos tempos passados, quando tua mãe ainda vivia e que às vezes à noite vinhas até minha casa. Então houve horas em que foste feliz, não?

— Sim, naquele tempo — assentiu Augusto, e o quadro radioso do princípio de sua vida deparava-se-lhe longínquo e pálido, como de um espelho muito antigo. — Mas isso não pode voltar. Não posso desejar tornar-me de novo uma criança. Aí tudo recomeçaria!

— Não, isso não faria sentido, tens razão. Mas pensa novamente no tempo lá em casa e na pobre rapariga, que quando estudante visitaste à noite no jardim do seu pai, e pensa também na linda senhora loura, com quem uma vez viajaste num navio, e pensa em cada instante em que uma vez foste feliz e em que a vida te parecia boa e digna de ser vivida. Talvez possas reconhecer aquilo que então te fez feliz e desejá-lo. Faz isso por amor a mim, meu rapaz!

Augusto fechou os olhos e olhou para trás em sua vida, como de um caminho escuro olha-se um longínquo ponto luminoso, de onde se veio, e tornou a perceber como tudo uma vez fora claro e belo ao seu redor e como então, devagar, tudo se tornara mais e mais escuro até que trevas o envolvessem e nada mais conseguisse alegrá-lo. E à medida que refletia e relembrava, mais belo e mais agradável e mais desejável parecia-lhe o distante raio de luz, e afinal ele o reconheceu e lágrimas saltaram-lhe dos olhos.

— Quero tentar — disse para o padrinho. — Tira de mim o velho encanto que não me ajudou, e dá-me em troca que eu saiba amar os homens!

Chorando, caiu de joelhos diante de seu velho amigo e já na queda sentia como o amor por esse homem queimava dentro de si e como nele uma luta se travava para encontrar palavras e gestos de esquecimento. O padrinho, porém, o pequenino homem, tomou-o suavemente nos braços e carregou-o até o leito, ali deitou-o e afastou-lhe os cabelos da fronte ardente.

— Está bem — murmurou ele baixinho — está bem, meu pequeno, tudo ficará bem.”

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Hermann Hesse

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