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Demian

Autor

Hermann Hesse

Editora

Record

Tradução

Ivo Barroso

“Queria apenas tentar viver aquilo que brotava espontaneamente de mim. Por que isso me era tão difícil?”

“ ... — Por que estás me olhando desse modo? Queres algo de mim?

— Não, nada — respondi-lhe. — Ainda assim, o senhor já me deu muito.

Franziu a testa.

— Ah! és amante da música? Acho uma tolice o amor pela música.

Sem deixar-me intimidar, repliquei:

— Tenho ouvido o senhor tocar muitas vezes na capela vizinha. Mas não desejo molestá-lo. Pensava encontrar no senhor algo, algo especial, não sei bem o quê. Mas o senhor não precisa importar-se comigo. Posso continuar ouvindo-o na capela.

— Fecho sempre a porta.

— Ainda há pouco o senhor se esqueceu, e estive lá dentro ouvindo-o tocar. Às vezes fico do lado de fora, sentado junto à porta.

— Ah! é? Da próxima vez podes entrar. Basta chamar-me à porta. Mas com força, e quando eu não estiver tocando. Agora vamos... dize-me o que querias. Estudas música?

— Não. Gosto de ouvi-la; mas só como esta que o senhor toca, música totalmente incondicionada, na qual se sente que o homem conjura o céu e o inferno. Creio que música me agrada por sua completa ausência de moralidade. Todo o resto é moral, e procuro algo que não o seja. A moral nunca me trouxe nada que não fosse doloroso. Mas não consigo expressar-me corretamente... O senhor decerto sabe que deve haver um deus que seja deus e demônio ao mesmo tempo? Já me disseram que houve um.

O músico ergueu um pouco o largo chapéu para trás e ajeitou os negros cabelos que lhe caíam sobre a ampla testa. Em seguida olhou-me de maneira penetrante e inclinou o rosto para mim, por sobre a mesa.

Em voz baixa e vibrante, perguntou:

— Como se chama esse deus de que falas?

— Não é muito o que sei a respeito; na verdade, sei-lhe apenas o nome. Chama-se Abraxas.

O organista olhou desconfiado em redor, como se alguém pudesse espiar-nos. Então aproximou-se mais de mim e murmurou:

— Já o imaginava. E tu, quem és?

— Sou um aluno do liceu.

— Como foi que soubeste de Abraxas?

— Por acaso.

Deu um murro tão forte na mesa que o vinho chegou a saltar do copo.

— Por acaso! Não digas bobagens, meu jovem. Nunca se chega a saber de Abraxas por acaso, saibas disso. Eu te direi algo mais sobre ele. Sei um pouco a esse respeito.

Calou-se e voltou a afastar a cadeira. Ao ver que o fitava ansioso por ouvir suas revelações, fez um gesto negativo.

— Não, aqui não. Fica para outra vez... Vamos, toma aí.

Então, metendo a mão no bolso do casaco que trazia vestido, tirou um par de castanhas assadas e estendeu-mas.

Aceitei-as e comi em silêncio, mostrando-me satisfeito.

— Vamos ver — murmurou ao fim de um instante. — Como soubeste a respeito de... dele?

Não vacilei em contar-lhe:

— Foi numa época em que me sentia solitário e perplexo. Lembrei-me então de um amigo meu de há muitos anos, que sabe de muitas coisas, segundo suponho. Eu havia desenhado um pássaro saindo de uma esfera terrestre. Resolvi enviar-lhe o desenho. Algum tempo depois, quando já não esperava resposta, chegou às minhas mãos um papel com as seguintes palavras: “A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que destruir um mundo. A ave voa para Deus. O deus se chama Abraxas.”

Sem responder-me nada, o musicista continuou descascando as castanhas e bebendo seu vinho.

— Vamos tomar outra jarra? — perguntou.

— Não, obrigado. Não sou muito de beber.

Riu-se, embora um tanto desengraçado.

— Está bem! Já comigo é o contrário e ainda vou ficar por aqui um pouco. Se quiseres, podes ir agora.

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