Contos morais
Autor
J.M. Coetzee
Editora
Companhia das Letras
Tradução
José Rubens Siqueira
A alma dos gatos
“... “Não existe nada que seja objeto invisível à percepção”, ela replica. “Invisibilidade não é uma qualidade do objeto. É uma qualidade, uma capacidade ou incapacidade, do observador. Dizemos que a alma é invisível porque não conseguimos ver a alma. Isso revela alguma coisa sobre nós. Não revela nada da alma.”
Ele balança a cabeça. “Aonde te leva, mãe”, diz ele, “ficar aqui nesta aldeia perdida nas montanhas de um país estrangeiro, desfiando minúcias escolásticas sobre sujeitos e objetos, enquanto gatos selvagens, cheios de pulgas e Deus sabe que outras pestes, se encolhem debaixo dos móveis? Esta é mesmo a vida que você quer?”
“Estou me preparando para o próximo lance”, ela responde. “O último lance.” Ela olha nos olhos dele, está calma; parece totalmente séria. “Estou me acostumando a viver na companhia de seres cujo modo de existir é diferente do meu, mais diferente do que meu intelecto humano jamais será capaz de perceber. Isso faz sentido para você?”
Se faz sentido para ele? Faz. Não. Ele veio até aqui para falar de morte, da perspectiva da morte, da morte de sua mãe e como planejar para ela, mas não sobre a pós vida dela.
“Não”, diz ele, “não faz sentido para mim, não mesmo.” Ele molha o dedo na sopa de feijão e estende a mão. O gatinho com a mancha branca para de brincar, fareja seu dedo cautelosamente, e o lambe. Por trás do olho, por trás da fenda negra da pupila, atrás e além, o que ele vê? Ocorre um lampejo momentâneo, luz emitida da alma invisível oculta ali? Ele não tem certeza. Se ocorre de fato um lampejo, o mais provável é que tenha sido um reflexo dele mesmo na pupila.
O gato desce do sofá com um salto ligeiro e se afasta com o rabo erguido.
“Então?”, diz a mãe. Ela sorri de leve, talvez zombando até.
Ele balança a cabeça, limpa o dedo no guardanapo. “Não”, diz.“Não vejo.” “
Deixar ver o melhor de si mesmo
“... Ele dorme no quartinho que dá para a rua. O quarto é tão frio que ele mal tem coragem para se despir. Adormece enrolado como uma bola debaixo das cobertas frias. No meio da noite, acorda congelado. Estende a mão para tocar o pequeno aquecedor que deixou ligado junto à cama. Está frio. Ele aperta o botão do abajur de cabeceira, mas não há luz.
Ele sai da cama, luta no escuro com o fecho da mala, põe meias, veste calça, uma parca. Enrola um cachecol na cabeça. Depois, batendo os dentes, volta para a cama e dorme intermitentemente até o amanhecer.
A mãe o encontra na sala, encolhido sobre as cinzas do fogo da noite anterior.
“Cortaram a eletricidade”, ele diz, acusador. Ela balança a cabeça. “Você ligou o aquecedor no seu quarto durante a noite?”, pergunta.
“Deixei o aquecedor ligado porque estava com frio”, ele diz. “Não estou acostumado a esse estilo de vida primitivo, eu venho da civilização e na civilização rejeitamos a ideia de que a vida tem de ser um vale de lágrimas.”
“Se a vida é ou não um vale de lágrimas”, diz a mãe, “o fato é que nesta casa, se você liga o aquecedor entre uma e quatro da manhã, horas em que a água do banho está esquentando, corta a eletricidade.” Ela faz uma pausa, olha para ele com franqueza. “Não seja infantil, John”, ela diz. “Não me decepcione. Não temos mais muitos dias juntos, você e eu. Deixe eu ver o melhor de você, não o pior.” “